Crítica | Anavitória, “COR”

“E quando eu canto cor, quando grito cor, quando espalho cor, eu conto a minha história”

Cerca de três anos depois de seu segundo álbum de estúdio, ‘O Tempo É Agora’, e sucedendo o ‘N’ – álbum covers do Nando Reis, as meninas do ANAVITÓRIA aterrissam no primeiro dia de 2021 com o terceiro projeto de inéditas da carreira intitulado ‘COR’ – dessa vez produzido de forma independente, gravado no Estúdio Rocinante e Estúdio do Tó.

Marcando uma fase mais madura e muito elevada do duo composto por Ana Caetano e Vitória Falcão, ‘COR’ vem quase que no sentido literário de seu próprio nome, trazendo uma explosão de cores ao preto & branco que marcou o setor criativo da dupla durante anos – no sentido estético e sonoro. Se em ‘O Tempo É Agora’ conhecemos Ana e Vitória sóbrias, marcadas pela sede de se expressar em versos e ritmos tímidos, em baixo som, e inércia, em ‘COR’ temos o exato oposto. Além do cantarolar expressivo e do grito indireto de liberdade criativa, presenciamos o projeto mais coeso e diverso das duas, se reconectando ao seu próprio ecossistema cultural.

A estética de ‘COR’ é assumidamente conceitual e poética. De acordo com as meninas, a capa do disco, imagens e até coreografias dos visuais para as faixas no Youtube (visualizers) foram bastante inspirados em performances artísticas de Marina Abromovic – conhecida por expressar sentimentos intrínsecos de forma artística -, como o visualizer da faixa ‘Ainda é tempo’ que se relaciona com a obra ‘Rest Energy’ da artista de 1980. A capa, fotografada por Gabriela Schmdt, remete diretamente à música inicial e às cores da bandeira do estado natal das meninas.

Iniciando pelo grito de orgulho ‘Amarelo, azul e branco’, Ana e Vitória cantam em meio à falas poéticas de Rita Lee. A música – cujo nome e sonoridade serviu como uma homenagem deliciosa ao Tocantins, estado de nascença das meninas – funciona como uma carta pessoal à sua terra, ecoando versos de sabedoria, orgulho de ter feito parte de sua própria história e principalmente enaltecer a força para lutar por ideais. “O norte é minha seta, o meu eixo, minha raíz”. É uma introdução poderosa ao disco que já se mostra o mais pessoal e intenso até aqui.

“Ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha ignorância. As minhas necessidades e as minhas relações. A minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele”

recita Rita Lee em ‘Amarelo, azul e branco’

Logo depois, dando um pause na solitude e abrindo espaço para letras mais sentimentais temos ‘Te amar é massa demais‘, onde somos introduzidos à uma celebração das coisas boas que é gostar de alguém, aquela urgência de querer se ver e poder se reunir, algo característico da dupla. O que surpreende de cara é o gingado abrasileirado, dando dica de como será a sonoridade do álbum até o final. Em ‘Tenta acreditar’, escrita por Ana e João Pedro, temos batidas fortes em meio aos vocais entoando recados de superação, quase que avisos para si mesmas enquanto repetem o que foi tá feito, resta viver o que vem por aí. Muito sentimentalismo e coração partido, em ‘Explodir’ temos o desejo de poder viver até o último segundo com aquela paixão que se foi. Ana até brincou que o nome veio da vontade de criar uma música que ela gostasse com esse nome, já que a de seu amigo Rubel não a agradava.

‘Cigarra’, a quinta faixa do álbum, é uma ode ao cantor Saulo Fernandes, que ganhou o carinhoso apelido de “cigarra” da compositora da faixa, Ana Caetano, e vem bem com esse gingado de batuque e marchinha que estão por quase todas as faixas. Aqui, além de versarem ao amigo, as meninas cantam de forma figurativa sobre o que podemos encarar ser a história de sua própria trajetória, enquanto alçam voos cada vez mais altos espalhando pedaços de si em forma de música, mantém os ‘pés grudados no chão’.Selva’, composição de Ana e Tó Brandileone, foi uma das mais difíceis de sair e serem finalizadas, e serve como um questionamento sobre as adversidades da vida. Pra quem acompanha a carreira da dupla, pode até ligar a música com recentes acontecimentos e encarar como um suspiro muito sutil de esperança para dias melhores – e entender que naturalmente eles sempre chegam.

Produzida por Tó Brandileone & Fábio Sá, a interlude ‘(dia 34)’ é inteiramente tocada no piano com resquícios de baixo, e marca, segundo as artistas, o 34º dia de gravação do disco – daí o nome -, precedida pela também breve ‘Ainda é tempo’, cantada por Ana. Apesar de marcar o centro de ‘COR’, a faixa foi a última produção a ser finalizada e a entrar no disco.

Entrando na segunda parte da obra, somos apresentados à ‘Eu sei quem é você’, a faixa mais intrigante do projeto. Na música, Ana e Vitória cantam sobre alguém que no fim se revelou uma farsa, falando e cantando de amor, mas o desconhecendo completamente. O tom intrigante se dá justamente por encaixar com uma situação recente, onde Tiago Iorc entrou em uma batalha pública com as cantoras após a dissolução de sua parceria com o empresário Felipe Simas – que também empresaria o duo. O que reforça ainda mais essa teoria é o visual da canção, que as retrata como marionetes enquanto cantam sobre não conhecer realmente alguém: “Tua boca nada diz, teu olho ninguém vê, eu sei quem é você.”

Caminhando em frente, ‘Terra’ traz o tom de balada ao disco que se sobressai em exemplificar o que parece ser o caminho do pop brasileiro dos próximos anos. Já em ‘Abril’, conhecemos um lado dolorido da composição do duo. A faixa é uma balada romântica densa sobre as dúvidas e incertezas de um relacionamento, assim como a necessidade de ter seus intensos sentimentos correspondidos por quem está do seu lado.

‘Te procuro’ apresenta uma sonoridade já vista em trabalhos anteriores, assim como sua letra, que está em busca de se desvencilhar de um amor destrutivo demais para seguir em frente. Regada ao som de violão, a faixa é um ótimo respiro e anuncia o fim da obra de forma muito sutil, quase em tom nostálgico. ‘Carvoeiro’, uma das mais fortes do álbum, foi escrita por Ana e Deco Martins na Praia de Carvoeiro, em Portugal. Daí o nome, que se tornou tão simbólico quando a própria letra.

Finalizando o disco temos a participação de Lenine na faixa ‘Lisboa’, facilmente uma das 3 melhores do projeto inteiro. Escrita por Ana e Paulinho Novaes, a faixa levou o nome do local onde foi iniciada e terminada, em uma temporada criativa do duo em Portugal. É curiosa a escolha de abrir e fechar o álbum com participações nas músicas, e certamente uma escolha muito certeira, visto que só melhoraram o repertório, transformando ambas as faixas em uma grande abertura e despedida fechando um projeto minuciosamente construído.

Ainda que mais expressivo, ‘COR’ carrega o pop que se recusa a ser refém de referências excessivamente estrangeiras, buscando exaltar a brasilidade como seu principal objetivo. Fica visível que as composições vêm do coração, com uma produção criteriosa e muito cuidadosa, mantendo sua fluidez com tom despretensioso e muito intuitivo.

‘COR’ representa uma nova fase para ANAVITÓRIA, tanto que a escolha de ser lançado no primeiro dia do ano vem para simbolizar justamente isso. Mas não só, é a marca de uma renascença e encontro do seu verdadeiro eu artístico. Desde o primeiro álbum autointitulado de 2016 (que também foi independente e abençoado pela Universal Music), o duo vem buscando cada vez mais encontrar seu tom de expressão musical, e parece que foi encontrado aqui. Ou ao menos iniciado o caminho.

Nota do autor: 81/100

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