Crítica | Liniker, “Índigo Borboleta Anil”

Em Índigo Borboleta Anil, Liniker torna possível a concepção de um trabalho onde sua voz se conecta aos instrumentos, sem precisar competir com qualquer outro som

Pouco mais de dois anos após Goela Abaixo, segundo disco da parceria com os Caramelows, Liniker retorna com seu primeiro álbum solo. Em um bate papo descontraído com a imprensa, falamos com Liniker sobre o álbum, suas inspirações, referências e participações de Índigo Borboleta Anil, assim incluindo trechos de seus comentários nessa review.

As primeiras letras de Liniker partiram de cartas antigas que ela escreveu e nunca enviou. Agora, em seu primeiro disco solo, intitulado Índigo Borboleta Anil, a cantora e compositora compartilha as suas vivências do agora. Não é que ela não tenha olhado para o passado nessa nova construção, afinal a artista precisou se conectar com a sua ancestralidade para se colocar por inteira ao longo das 11 faixas que compõem esse primeiro álbum solo, que é co-produzido por Liniker ao lado de Júlio Fejuca e Gustavo Ruiz.

Com a participação de Milton Nascimento, de Tássia Reis, de DJ Nyack, de Tulipa Ruiz, da Orquestra Jazz Sinfônica, de Letieres Leite e da Orkestra Rumpilezz, eis uma obra que traduz Liniker em sua completude e em tempo real.

“Eu me vejo nele”, comentou Liniker em entrevista sobre Índigo Borboleta Anil. “Quando eu o ouço, percebo que é um álbum de groove, um trabalho preto que circula bem no hip hop e, ao mesmo tempo, tem uma orquestra que poderia estar em um filme da Pixar”. Essa pluralidade faz com que a artista prefira não colocar o disco em uma prateleira ou em uma caixinha com uma única definição: “é um álbum de música do começo ao fim: nas pausas, nos silêncios, nos textos e nas trocas”. 

“Clau” inicia a sequência e dá o tom do que está por vir. Com a presença da Orquestra Jazz Sinfônica e harpa tocada por Jennifer Campbell, a canção tem uma letra que homenageia Claudete, cachorra que a cantora adotou. Trata-se de um abre-alas sobre o cuidado e o afeto que permeiam o trabalho. “Logo no começo, apresento algo dançante e que dança do jeito que eu gosto de dançar”, revela Liniker. Na sequência, vem “Antes de Tudo”, que foi a primeira composição que a artista escreveu na vida, aos 16 anos de idade, e que teve a participação de Letieres Leite e da Orkestra Rumpilezz.

Em inglês, “Lili” é a maneira como a artista, nascida em Araraquara, no interior de São Paulo, se traduz em outro idioma. É a forma como ela pincela os sons que escutou ao longo da vida, como Diana Ross, Barry White e Stevie Wonder. “Psiu” foi um dos singles lançados previamente, assim como “Baby 95” (composta por Liniker ao lado de Mahmudi, Tássia Reis e Tulipa Ruiz) e “Presente” (esta foi apresentada pela primeira vez  no programa COLORS e, agora, chega totalmente repaginada, incrementada com novos elementos, como sopros, percussão e mpc; esta última tocada por Curumin). Uma gostosa e aliviante renovação para a canção.

“Lua de Fé” representa a intuição que é tão importante nas vivências da artista. O ponto de partida para essa criação surgiu de um abraço que ela deu na cantora e compositora Luedji Luna e, nessa troca, Liniker sentiu que a amiga estava grávida. “Eu senti a energia da criança e eu não sabia da gravidez. Acho bonito poder cantar sobre o nascimento do filho de uma contemporânea e de uma pessoa pela qual eu tenho uma verdadeira paixão artística”, disse Liniker para a imprensa. A canção, inclusive, entra em um campo maternal que se conecta com a faixa seguinte: “Lalange”.

Crédito/reprodução: Caroline Lima

Com uma introdução narrada e representando um sonho que a artista teve, “Lalange” fala sobre a criança de Liniker e também sobre Miguel Otávio Santana, menino de 5 anos de idade que caiu do nono andar de um prédio de luxo, no Recife, e que estava aos cuidados da patroa de sua mãe, Mirtes Renata Souza. “Eu quis falar das nossas crianças, além dessas mães que estão cansadas e que não aguentam mais chorar”, compartilhou. “É uma maneira de devolver essa música para minha mãe, para Mirtes e para o Miguel”. A presença da voz de Milton Nascimento dá uma dimensão ainda maior à “Lalange”. “Ter o Milton Nascimento ali, foi como olhar para a minha ancestralidade em tempo real. Frequentemente, o sonho não é permitido para as pessoas pretas. Milton representa essa possibilidade. Eu olho para a minha criança, que é o meu passado, vejo o meu presente e olho para o futuro e, nesse fluxo, Milton é a minha seta”, definiu Liniker.

“Diz Quanto Custa” (escrita por Liniker com Tássia Reis, Mahmundi e Vitor Hugo) é um samba rock e entra na reta final de Índigo Borboleta Anil, trazendo o groove e a cadência que Liniker cresceu ouvindo dentro de casa. “O significado dessa música é muito especial, porque ela me diz que consegui chegar no âmago das minhas referências. É um samba rock para minha mãe dançar”, afirma. “Sou grata pela produção do Júlio Fejuca e do Gustavo Ruiz, nesse sentido. Eles trouxeram os universos deles, que, quando somados com os meus, deram muita liga. Conseguiram entender o que eu queria passar com o meu som”, complementa. “Diz Quanto Custo” traz ainda a voz de Tássia Reis, coros de Tulipa Ruiz e DJ Nyack.

Crédito/reprodução: Caroline Lima

“Vitoriosa” encerra Índigo Borboleta Anil em festa. É um grito em formato de samba-enredo. “Quero que a alegria seja uma condição de todas nós. Quando eu me coloco como vitoriosa, é uma forma de estar politicamente ativa também”, afirma Liniker. Ainda na finalização do projeto, há a faixa-bônus “Mel”, que mostra um pouco dos bastidores do estúdio, levando o público para dentro do processo de gravação.

Liniker buscou referenciar o melhor que há em sua história, seja em retratos vividos por si própria ou por pessoas pelas quais acha necessário retratar. É nesse turbilhão de sentimentos que ela identifica seu melhor e se transparece de forma sonora em um trabalho sincero e único. Unindo o groove ao samba, o rock ao melhor da MPB, Liniker torna possível a concepção de um trabalho onde sua voz se conecta aos instrumentos, sem precisar competir com qualquer outro som. Ainda, simboliza o melhor da artista que dizia não saber contar gotas, mas aprendeu a nadar com suas próprias ideias.

Nota do autor: 94/100

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