Crítica | Judas e o Messias Negro escancara as muitas falhas e negligências do Estado

“Judas e o Messias Negro” venceu o Oscar 2021 em duas das seis categorias que concorria

Com uma fotografia de tirar o fôlego, o filme baseado em fatos reais conta com dois personagens principais interpretados por Daniel Kaluuya (Fred Hampton) e Lakeith Stanfield (William O’neal), atores já conhecidos na academia pelos filmes Get Out (Corra), Pantera Negra (Daniel Kaluuya) e a série Atlanta (Lakeith Stanfield). Ambos concorreram ao Oscar 2021 como melhor ator coadjuvante e o filme estrelado por eles concorreu a melhor filme e outras cinco indicações.

Judas e o Messias Negro é uma cinebiografia, cujo o contexto remonta à década de 60, período marcado pela luta por direitos civis nos Estados Unidos. Para termos alguns parâmetros da ambiência do filme, o fato se passa em 1968, logo após o assassinato de Malcom X (1964) e Martim Luther King (1968), ou seja, época em que os conflitos raciais estavam em efervescência.

Fred Hampton (Daniel Kaluuya) é líder do Partido dos Panteras Negras em Illinois e vice-presidente do diretório nacional, com carisma e uma capacidade de liderança impecável, ele conduz as ações do Partido para o enfrentamento do racismo sistêmico e da violência policial. O Partido oferece assistência à comunidade local e agrega um número grande de adeptos. À medida em que as ações avançam, as demais estruturas da sociedade se veem ameaçadas por essa organização.

William O’Neal (Lakeith Stanfield) é um homem negro à margem da sociedade que vive de furtos e roubos. Em um desses episódios de roubo, é pego e, ao ser interrogado pelo FBI , o agente questiona se o mesmo tem afinidade com os temas relacionados às questões raciais, mas O’neal se mostra distante desse debate.

O’Neal se torna Judas, pois recebe uma proposta de “liberdade” desde que aceite ser informante do FBI sobre as ações dos Panteras Negras. A partir daí, o filme se desenvolve apresentando as questões mais profundas sobre essa relação, culminando ao fim na morte do líder Fred Hampton .

O longa também é o primeiro a ser inteiramente produzido por pessoas negras. Confira onde assistir aqui.

Escrevo essa análise na mesma semana em que o policial envolvido com o assassinato de George Floyd foi condenado e acredito ser importante, até do ponto de vista do racismo brasileiro, entendermos as questões que envolvem e permeiam o racismo estrutural, apresentado de forma brilhante no filme. Vamos a algumas considerações importantes e elementares sobre essas questões:

The Black Panther Party

O ano de 1964 é marcado pelo fim da segregação institucionalizada nos Estados Unidos, no entanto, as marcas da segregação são extremamente profundas e ainda é possível ver suas nuances e conflitos nos dias de hoje. O partido político dos Panteras Negras foi fundado em 1966, por Huey Newton e Bobby Seale, em Oakland, na Califórnia. A principal ideologia do partido era fortalecer a comunidade negra e combater a violência policial.

O grupo político foi perseguido e enfraquecido pelo FBI e, por fim, dissolvido em 1982. Fred Hampton Jr., o filho do Messias Negro, é o atual presidente do Conselho Consultivo do Partido dos Panteras Negras. O filme apresenta outras entidades de grupos organizados como as dos brancos pobres, hippies, latinos e outras organizações negras como a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP). Também é possível ver, mesmo que de forma superficial, como funcionava a articulação entre elas.

A ausência do Estado e o papel do FBI

Durante o longa, é importante observar que fica evidente a ausência do Estado enquanto provedor de políticas públicas para as pessoas negras. Essa ausência, combinada com a violência policial, é que promove a necessidade de uma organização. Para diminuir as disparidades, o Partido serve café da manhã para que as crianças possam comer, oferecem escolas para que elas tenham acesso ao ensino e montam um hospital improvisado para os feridos desse conflito.

Muito já se sabe do papel do FBI no combate ao Partido dos Panteras Negras. Em algum momento, o discurso do agente do FBI (Jesse Plemons) indica que, para o Estado, a Klan e os Panteras Negras são a mesma coisa, criando uma falsa equivalência já que a KKK (Ku Klux Klan) promovia o ódio pela cor através de terror e assassinatos, enquanto o Black Panthers apenas fortalecia a sua comunidade como forma de resistência e sobrevivência, se defendendo da violência promovida pelo Estado.

A maior controvérsia se encontra no momento em que o chefe da operação pergunta ao agente do FBI o que aconteceria se sua filha trouxesse um homem negro à sua casa, o agente, pensativo, tenta entender o que o seu chefe está dizendo. Mesmo visivelmente comovido pela pergunta, o agente concorda com o racismo presente nela. Este momento abre muitos debates sobre como o racismo funciona e sobre como alguém dotado de poder pode usar o Estado para aprofundar ainda mais o racismo.

Extremamente necessário no que diz respeito ao seu papel documental e histórico, o filme se faz bastante pertinente nos dias de hoje, uma vez que os conflitos raciais ainda se mostram presentes, uma herança do período escravocrata. A qualidade técnica de filmagem e o cuidado nos detalhes, além da atuação imersiva dos personagens, são argumentos suficientes para o longa concorrer à estatueta. O filme venceu as categorias, melhor ator coadjuvante para Kaluuya e melhor canção original para cantora H.E.R pela música “Fight For You”.

Nota da autora 100/100

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