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“Ainda Estou Aqui” é sobre afeto e luto, mas também sobre lembrança

Além do importante ato de relembrar, “Ainda Estou Aqui” faz cinema no sentido mais genuíno, em uma história de afeto e luto.

“Ainda Estou Aqui” conquista os espectadores pela delicadeza e pelos detalhes minuciosos. O diretor Walter Salles recria o Brasil dos anos 70 de forma tão humana que o choque entre gerações dentro da sala de cinema se torna quase palpável, misturando a comoção de quem viveu aquela época e de quem apenas a conheceu pelas aulas de história.

O filme narra como a vida da família Paiva foi radicalmente transformada em uma noite qualquer de 1970, quando agentes da inteligência do exército levaram Rubens Paiva para um suposto interrogatório, e ele nunca mais foi visto. Uma tragédia compartilhada por milhares de famílias durante a Ditadura Militar, período marcado por desaparecimentos, eufemismo para as atrocidades que desumanizaram tantas vidas.

“Ainda Estou Aqui” começa nos fazendo sentir parte daquela família, especialmente pela figura de Rubens, interpretado com carisma pelo belíssimo Selton Mello, que coloca à prova sua capacidade de ganhar o público. Seu senso de humor, expansividade, admiração dos filhos e o carinho apaixonado pela esposa Eunice Paiva – brilhantemente vivida por Fernanda Torres. As personalidades de cada filho são apresentadas de forma tão envolvente que rapidamente nos sentimos em casa com eles. As cenas que mostram a convivência calorosa da família e os muitos amigos que frequentavam a casa são um convite direto à nostalgia, transportando muitos espectadores de volta à infância nos anos 70. Essa energia preenche cada canto da casa com vida, uma casa que respira junto com a família e impacta ainda mais ao ser vista vazia no desfecho.

Selton Mello nos conquista plenamente como Rubens, e é justamente quando estamos apaixonados, que ele é levado. A partir desse momento, a história se torna da Eunice. Vemos a perplexidade de uma mulher que precisa esconder seu desespero: primeiro, porque seus filhos ainda não entendem o que está acontecendo; depois, porque os agentes do exército continuam na casa por dias, criando uma tensão constante. É um retrato de violência que não precisa ser explícita para cortar o coração — a lágrima que nunca cai, o grito que nunca vem, mas que sufoca.

Como permitir que cada filho, em suas infâncias e adolescências, processasse no seu tempo o luto de perder o pai e o que seria a vida dali em diante? E quando ela pode sofrer esse luto? Em um país onde tantas coisas não podiam ser ditas e ficavam ocultas, a  própria Eunice impõe esse silêncio no relacionamento com os filhos, em um ato de sobrevivência. Essa reflexão foi destacada pela própria Fernanda Torres nas coletivas de imprensa sobre o filme: Eunice estava tão assustada quanto seus filhos, mas que precisava fingir ter certeza de tudo para manter o equilíbrio. Fernanda traduz esse conflito com uma performance impecável, não só espremendo para fora mas também levando o público para o interior dela. Um caso onde técnica, sentimento e instinto se casam de maneira plena.

O final é quase um suspiro de alívio para o filme. Sem precisar dizer uma palavra, Fernanda Montenegro marca presença com a força que só ela tem, traduzindo a sensibilidade do filme, que não se limita a relembrar, mas também dá rosto ao que aconteceu. A história de Rubens e Eunice nos aproxima de cada pessoa que sofreu durante aquele período. É impossível não notar a quantidade expressiva de idosos presentes nas sessões, algo que, ao conversar com outras pessoas, percebi se repetir em várias cidades. 

Saí do cinema com a cabeça pesada de tanto chorar, os olhos inchados, e não pude deixar de ouvir os comentários dos idosos na saída. Compartilhando lembranças e falando de como o filme os levou de volta a uma época tão difícil e sensível. E ali, naquelas conversas tão naturais entre jovens e idosos, percebi que “Ainda Estou Aqui” faz cinema no seu sentido mais genuíno.

O filme é uma prova o de como o cinema pode unir de maneira natural e comovente. Nas saídas de diversas sessões, é impossível ignorar esse contraste e, ao mesmo tempo, a conexão entre os idosos que vão para relembrar e os jovens que vão para conhecer mais de perto. Os dois grupos, no entanto, compartilham a mesma comoção, já que todo brasileiro tem alguma história familiar com esse período da Ditadura Militar. É um filme que existe para nós, que movimentou as salas de cinema e celebra o prestígio de uma obra brasileira capaz de tocar fundo na nossa afeição e memória coletiva.

Além do importante ato de relembrar, “Ainda Estou Aqui” é sobre afeto e luto. É um filme que nos toca e nos une.

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