Doja Cat ensaia retorno ao pop com “Vie”, mas traz consigo a melancolia escarlate

Em seu quinto álbum de estúdio, Doja Cat abandona o deboche e os refrões virais para mergulhar num pop melancólico, contido e cuidadoso

Alguns dias antes do anúncio de sua turnê mundial, que passa por São Paulo no próximo ano, a cantora, compositora e rapper Doja Cat mostrou ao mundo o seu quinto álbum de estúdio, Vie. O novo trabalho não é um recomeço — e também não é exatamente uma continuação. Ao longo de suas 13 faixas, o disco chega sem pedir permissão para ser entendido. Ele é algo que existe entre os seus passados: do pop chiclete de Amala (2018) à estética semi-industrial de Scarlet (2023). É como se a artista tivesse espremido sua carreira em um álbum que expressa sua bagagem. 

Gravado entre 2022 e 2025, com sessões no lendário estúdio Miraval, no interior da França, o álbum carrega esse espírito: ele é sofisticado, solar em aparência, mas silenciosamente denso. E é nesse paradoxo que Doja se instala. A produção traz nomes como Yeti Beats, George Daniel, Sounwave, Y2K, além do badalado Jack Antonoff, que já esteve por trás de trabalhos de Taylor Swift, Lorde, Lana Del Rey, Kendrick Lamar, e tantos outros artistas de peso na indústria musical.

Vie estabelece uma estética de batidas suaves, sintetizadores com ecos dos anos 80 e uma mixagem que flerta com o minimalismo, mas não hesita em saturar quando necessário. É um álbum sobre escolhas — e também sobre as consequências delas. 

Doja Cat sempre foi múltipla. No espaço de cinco álbuns, ela percorreu do funk-pop em Amala (2018), o psicodelismo radiofônico em Hot Pink (2019), o universo satírico em Planet Her (2021), até chegar à raiva mais soturna de Scarlet (2023). Em Vie, pela primeira vez, ela parece não estar tentando provar nada. E é justamente aí que as coisas se tornam interessantes — e também perigosas. Não há ganchos instantâneos como “Say So”, nem o sarcasmo explícito de “Paint the Town Red”. Em seu lugar, há respiros. Ruídos. Sintetizadores que sugerem tristeza. Letras que hesitam mais do que afirmam.

A narrativa aqui é emocional, mas não dramática. “Cards”, a faixa de abertura, define o território: melodia contida, vocais em camadas, e uma sensação de que algo se desfez e não sabemos bem o quê. Em “Jealous Type”, ela dança ao redor da própria insegurança sem se vitimizar, enquanto “AAAHH MEN!” talvez seja o único momento em que o disco lembra que existe um mundo fora do próprio quarto. É uma das poucas faixas que gritam — e mesmo o grito é calculado, elegante, enfeitado por sintetizadores. “Take Me Dancing”, sua colaboração com SZA, o único feat do disco, poderia ser maior do que é, mas talvez o mérito esteja justamente no fato de não ser. Não há uma tentativa de hit — só uma conversa à meia-luz entre duas artistas que já entenderam seu brilho.

Em termos técnicos, a produção é primorosa. O excesso de zelo, em alguns momentos, torna o álbum hermético. Não há falhas aparentes, mas a sensação de previsibilidade rítmica se acumula. Os sintetizadores, embora bem construídos, soam parecidos em mais faixas do que deveriam. E a voz de Doja, que já foi um instrumento versátil e teatral, aqui parece se reduzir a uma única entonação: sussurrada, contida, quase em autoflagelo emocional. A uniformidade funciona como estética, mas compromete a longevidade de algumas faixas.

A repetição de temas — ciúmes, ausência, desejo, autossabotagem — já é esperada, mas em alguns momentos parece se reciclar demais. Ainda assim, há honestidade no modo como ela expõe as contradições: o querer e o repelir, o sentir demais e fingir que não. “All Mine”, uma das melhores faixas, e “Come Back”, são exemplos disso. São canções que não tentam resolver sentimentos, apenas descrevem o peso de tê-los.

Vie é o relato de uma artista que não está em crise, mas também não está confortável. E que decidiu transformar esse estado em música. É um disco que soa como um quarto sem janela: você se acostuma com a luz artificial, e ela até parece bonita por um tempo. Mas, eventualmente, você sente falta do sol.

Na discografia de Doja Cat, Vie ocupa um lugar curioso. Ele é, de longe, seu trabalho menos imediato. É seu disco menos “Doja” em termos de persona pública, mas talvez o mais íntimo em termos de persona artística. Ele não pretende ser um divisor de águas, mas é um marcador de fase. Não é um clássico. Mas é um daqueles álbuns que você vai lembrar com carinho daqui a cinco anos, mais pela sensação de que ali havia alguém tentando dizer algo importante sem saber exatamente como.

72/100

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