Qualquer pessoa que entre em contato com a obra de Florence + The Machine não falha em imaginar a vocalista como uma verdadeira figura mítica. Desde que debutou na indústria da música, seu canto ecoa como ritual; suas letras misturam uma dor descomunal e uma beleza que só se encontra experimentando os extremos do amor e da danação. Mas em Everybody Scream, seu sexto álbum de estúdio, a cantora não emerge mais como a criatura etérea de Lungs (2009), nem como a sacerdotisa sublime de How Big, How Blue, How Beautiful (2015). Ela retorna do inferno — e traz nas mãos o preço da sobrevivência.
Essa travessia, porém, só aconteceu por conta de uma dor muito real. Florence começou a compor Everybody Scream após uma gravidez ectópica, uma complicação rara e perigosa que, durante a turnê de Dance Fever em 2023, a levou a uma cirurgia de emergência quase fatal. “O mais próximo que cheguei da morte foi tentando criar vida”, contou. A ironia devastadora de criar e morrer ao mesmo tempo a deixou suspensa entre mulher e espectro. Duas semanas depois, ela já estava de volta aos palcos — ainda frágil, mas determinada a transformar o trauma em criação. É desse corpo ferido, e dessa experiência entre vida e morte, que nasce Everybody Scream.

Gravado no estúdio Long Pond, de Aaron Dessner, isolado em meio à natureza, o álbum traz uma sonoridade complexa e obscura, com arranjos que respiram entre cordas e sintetizadores sombrios. Canções como “Drink Deep” e “Perfume and Milk” evocam imagens naturais como metáforas do processo de cura: “The falling leaves / the fallen fruit / the rot and the ruin / the earth and the worms / the seasons change, the world turns.”
Ao ouvir sua voz e suas letras, é difícil enxergar Florence Welch como uma mulher comum, com desejos comuns — até porque a relação de Florence com a feminilidade nunca foi convencional. Neste álbum, ela escreve a partir de um lugar de ruptura: físico, emocional, ontológico. Desde o início, ela canta o preço do sacrifício feminino. Agora, o sacrifício é literal — e a ressurreição, mais amarga. A maternidade frustrada, a quase morte e a alienação do próprio corpo criam uma nova consciência: ser mulher é, para Florence, uma maldição e um dom; um ciclo de morte e renascimento contínuo, de desejo e exílio.
A dualidade entre o divino e o grotesco sempre foi o cerne de sua arte, mas aqui se torna ainda mais essencial. Em faixas como “Witch Dance” e “Kraken”, Florence abraça a monstruosidade que sempre rondou suas canções: “And I met every monster from the bar to Broadway / And all their violent offers, I just turn them away (…) After all, there’s nobody more monstrous than me.” A figura mítica da bruxa — símbolo de desejo, corpo e poder — torna-se espelho e libertação. O erotismo, antes sagrado, se torna terreno e febril: “Open my legs, lie down with death / We kiss, we sigh, we sweat.” A monstruosidade e o amor coexistem como forças inevitáveis.
Entre os destaques, “Buckle”, coescrita por Mitski, é uma balada hipnótica que fala sobre um romance fatídico, em uma confissão que une vulnerabilidade e reverência. É uma das faixas mais elogiadas pelo público e representa a rara interseção entre o pop emocional e o art rock introspectivo que Florence domina como ninguém.
Em “The Old Religion”, ela retoma a fascinação pelo misticismo e pela escuridão, sussurrando: “When it’s at its darkest, well it’s my favourite bit.” Uma linha que parece responder a algo que disse lá em 2009, no início da carreira: “Sempre fui atraída por imagens sombrias… até criança, eu preferia escrever sobre uma flor morrendo do que desabrochando.” Quinze anos depois, essa frase soa como epitáfio e profecia.
Há algo de encantadoramente profano em Everybody Scream. Em “Sympathy Magic”, ela reconhece o peso de seu “dom” profético — a habilidade de prever sua própria ruína por meio da arte — e desafia a vida a encará-la de frente: “So come on, tear me wide open / A terrible gift / Let the chorus console me.” É um dos momentos mais emocionantes do disco: a artista que há anos canta sobre destino agora o aceita, com os olhos abertos.
Mas é em “One Of The Greats”, talvez uma das faixas mais grandiosas do álbum — um hino às mulheres e à transformação — que Welch decide mudar o rumo da própria história: “I will let the light in / I will let some love in / I will be happy / it will be perfect.” Aqui, ela não implora mais aos deuses: ela cria sua própria oração.
Musicalmente, Everybody Scream abraça o gótico de vez. As guitarras soam como correntes arrastadas; os vocais se multiplicam em coros fantasmagóricos; e os arranjos, mesmo grandiosos, nunca soam celestiais — são terrenos, viscerais e pulsantes. É um trabalho de textura e densidade, no qual Welch transforma o próprio desespero em liturgia. Essa entrega total também está na faixa-título, uma carta de amor aos palcos. Florence canta sobre o ato de se doar inteira em cada performance, sobre as alegrias e tristezas de viver em função do espetáculo.
O álbum é uma viagem de volta do inferno tão catártica e introspectiva quanto Unreal Unearth (2023), de Hozier. Mas aqui, o inferno é o próprio corpo. Florence emerge dele sabendo que, ainda que deseje profundamente, jamais viverá os dois sonhos ao mesmo tempo: a beleza tranquila de uma vida comum e a adrenalina revigorante de cantar sob holofotes. “As músicas podem ser incrivelmente proféticas, como avisos subconscientes ou mensagens para mim mesma”, disse Welch. “Mas muitas vezes eu só entendo o que estou tentando dizer anos depois.”

E agora, ela entende. Em Everybody Scream, Florence toma as rédeas da própria história e manifesta, entre gritos e preces, o desejo de que as coisas fiquem bem, por fim: “Let there be love, let there be light / Let there be a quiet day and an easy night / Let me put out a record and have it not ruin my life.” E então chega o fim: “And Love”, faixa final, em que a frase “peace is coming” é repetida como um mantra. Não há redenção, apenas continuidade. O grito do título não anuncia um fim, mas um chamado.
Se há algum ponto fraco em Everybody Scream, é a previsibilidade. O álbum segue a cartografia emocional e estética que Florence vem desenhando há mais de uma década: o misticismo, o sacrifício, o corpo, o palco, o amor. Mas quando se trata de Florence + The Machine, previsível é sinônimo de excelência. Ninguém esperava menos do que um espetáculo de dor, beleza e poder — e foi isso que ela entregou: mais sombrio do que tudo que havia escrito e mais maduro do que qualquer coisa que havia lançado antes.
Quinze anos depois de dizer que preferia escrever sobre uma flor morrendo a uma florescendo, Florence Welch cumpre sua profecia. Em Everybody Scream, ela não canta apenas sobre monstros — ela se torna um deles. Mas há beleza nisso: o som do grito é também o som da vida. E quando Florence grita, o mundo — e todos os seus monstros — escutam.