Foi com uma camisa branca de punhos cortados, comprada em um brechó de igreja nova-iorquino, estampada pelo monograma RV no peito, uma fita preta envolta na gola e um blazer jogado no ombro, adornado com um broche de cavalo, que Patti Smith posou para a capa de Horses, seu primeiro álbum, de 1975. Nela, a imagem andrógina e doce da cantora-poeta sob a luz natural, captada pelas lentes do amigo e confidente Robert Mapplethorpe, traduz o disco que pavimentou a estrada do punk americano: transparente, simples e cru, mas ao mesmo tempo poético e visceral.
A simplicidade e crueza da fotografia se mesclam à excentricidade poética da figura de Smith e desnudam a aura de Horses. Existe ali uma sonoridade dura marcada pelos três acordes clássicos do punk rock, mas lapidada pela poesia autoral da artista, marcando um período de transição do rock clássico para o punk que conheceríamos anos depois. O primeiro disco dos Ramones, por exemplo, só chegaria no ano seguinte. Já o debute dos Sex Pistols, do outro lado do Atlântico, daria as caras apenas em 1977. Horses é um embrionário, um trabalho seminal.
Patti Smith é uma das precursoras de um movimento coletivo e tem ao seu lado nomes como Television, Debbie Harry, New York Dolls, Iggy Pop, Velvet Underground e, dentre outros, Richard Hell. Todos esses artistas são contemporâneos e atuaram na cena de Nova York, reunindo-se em apresentações e encontros em casas de show alternativas como Max’s Kansas City e CBGB. Sem Patti, talvez não teríamos colhido frutos que vão de PJ Harvey e Siouxsie Sioux a Florence and The Machine, Lorde e até Rosalía, que incorporou um poema de Patti na faixa “La Yugular” em seu aclamando e recém lançado disco LUX.

A sua performance poética e mística encontra raízes em Arthur Rimbaud, poeta francês do século XIX de quem era e é devota, passa pela fusão entre espiritualidade e submundo da Geração Beat com Allen Ginsburg e William S. Burroughs, e mergulha de cabeça nos grandes poetas do rock como Jim Morrison, do The Doors, e Bob Dylan, este sendo o único músico no mundo que já ganhou o Nobel de Literatura. O legado de Patti Smith marca em Horses também o início de uma era de mulheres intelectuais e intensas no rock, rompendo com uma geração puramente radiofônica masculina e resgatando a força revolucionária da contracultura dos anos 1960.
Lançado em 10 de novembro de 1975, Horses é o primeiro de 14 álbuns de estúdio de sua carreira. Escritora e compositora voraz, Smith tem uma bibliografia de 27 livros publicados até agora, sendo “Linha M” (2015) e “O Ano do Macaco” (2018) destaques, mas tendo em “Só Garotos” (2010) o seu grande trabalho como escritora. A obra é resultado de uma promessa feita a Robert Mapplethorpe, antes de seu falecimento, vítima da epidemia de AIDS nos anos 1980. O livro narra o período que precede Horses, nos anos em que ela viveu com Robert numa Nova York epicentro do caos criativo, da decadência urbana e da efervescência artística. “Só Garotos” traz muito de Horses e são complementares enquanto cartas de amor à juventude, à arte e à cidade. A experiência da leitura acompanhada da audição do disco é rica e quase transporta o leitor-ouvinte àquele universo.
Horses e a carreira musical de Patti Smith como um todo é construída sob um território híbrido entre a poesia e o rock. Ela dispensa a pureza de ambos e se coloca enquanto um corpo heterogêneo que tem na performance essa junção: seu trabalho musical e, essencialmente, suas apresentações, são rituais de contemplação da poesia, deslocada da folha em papel ou das telas como adaptamos hoje, e é posta diante da performance manifesta, que transita entre o canto e a declamação. O resultado disso encontra sua matriz em três elementos fundamentais para a obra smithiana: o corpo como oficina de Rimbaud, a introdução do feminino no fluxo de pensamento que recusa convenções sociais e morais da Geração Beat, e o uso da palavra como invocação ritual de Jim Morrison e Bob Dylan.
No disco, temas autobiográficos em forma de sonhos e por vezes ritualísticos carregam o simbolismo necessário para falar de luto, da morte, da liberdade, da espiritualidade e, sobretudo, de sua contestação. “Jesus morreu pelos pecados dos outros, não pelos meus”, é frase que abre sua elegia poética em “Gloria”, uma adaptação da canção de Van Morrison, mesclada a seu poema autoral “Oath”. A energia punk explosiva da música é um hino à libertação ética, sexual e espiritual. Ao renegar a moralidade cristã, Patti emancipa o próprio desejo e dá voz ao corpo, ao erotismo e à rebeldia.
A família e os fatos que a circundam aparecem de forma contínua em Horses, mas sob contornos oníricos e metafóricos. Ao narrar o afogamento de uma garota em “Redondo Beach”, a composição faz referência a um episódio antigo em que a irmã de Patti, Linda, sumiu após uma briga entre ambas. Por trazer um episódio metafórico, muitas pessoas chegaram a interpretar a música com uma temática lésbica, o que a artista incentivou por muito tempo. A questão familiar também surge em músicas como “Free Money” e “Kimberly”: a primeira traduz sua própria fantasia e a da mãe em escapar da pobreza, que sonhava em ganhar na loteria; e a segunda, em homenagem a sua irmã, descreve de forma cósmica o trabalho de parto que a trouxe à vida.
O luto e a morte dão as caras em “Birdland”, uma das faixas mais poéticas do álbum, inspirada em “O Livro dos Sonhos” (1973), de Peter Reich. A canção é narrada por um menino enlutado pela morte do pai, que imagina um ovni que viria buscá-lo para promover esse reencontro. A reverência aos mortos toma forma em “Elegie”, composição quase litúrgica que lamenta a morte de Jimi Hendrix. A faixa fecha o disco e tem um anti-clímax proposital que transforma o silêncio em homenagem.
Inspirada em um sonho de Jim Morrison, em “Break It Up” o músico aparece preso ao mármore, com asas que tentam se abrir, como um anjo enclausurado. Aqui, ela amplia seu diálogo Patti-Morrison-Rimbaud com simbolismos acerca da luta pela liberdade espiritual, a prisão do corpo e a transcendência interrompida. A dualidade entre a vida e a arte é uma das marcas da obra da cantora, ao traçar uma linha tênue que por vezes se encurva de um lado para o outro e quase desaparece.
Com pouco mais de 9 minutos de duração, “Land: Horses / Land of a Thousand Dances / La Mer(de)” condensa toda a mítica do disco. Dividida em três partes, a canção é quase uma ópera punk. No primeiro ato, narra em fluxo de consciência o ataque simbólico a Johnny, figura arquetípica recorrente na obra de Smith, que simboliza juventude e rebeldia, transformando a violência em rito de passagem; os “horses” surgem como força selvagem e ambígua que mistura heroína, energia vital e impulso de libertação.
Em seguida, em “Land of a Thousand Dances”, a narrativa se dissolve em transe, com ritmos repetitivos e improvisos que celebram o movimento frenético do corpo como purgação e metamorfose, evocando a tradição beat e o espírito visionário de Rimbaud. Na parte final, “La Mer(de)”, o discurso se fragmenta até virar glossolalia, a capacidade de falar línguas durante o transe religioso, fundindo pureza e sujeira, transcendência e caos. A linguagem se torna elemento primordial e delirante, ecoando Morrison e ao simbolismo francês, enquanto Johnny renasce não como indivíduo, mas como símbolo. A faixa inteira funciona como um ritual xamânico urbano, em que violência, dança e delírio conduzem à transformação espiritual, condensando o gesto poético, punk e profético de Patti Smith.

Horses, em seus cinquenta anos, carrega consigo a força do manifesto punk por meio da elegia poética de Patti Smith, que faz do trabalho o seu diário espiritual, recheado de cartas de amor a seus ídolos, que não estão apenas na literatura e na música, mas também dentro de casa. É um álbum sobre transformação, que marca o nascimento de uma vertente musical sem assumir plenamente esse rótulo. Carrega a história do rock e o peso da poesia, as funde e atualiza, usando o corpo, a voz e o mito como ferramentas de criação.
O álbum é uma intersecção que marca Patti Smith como recriadora, herdeira e crítica de tradições. Ela recupera Rimbaud do mito adolescente e o inscreve na maturidade; corrige a falta da presença feminina na Geração Beat; e subverte o mito autodestrutivo de Morrison, demonstrando que a poesia pode ser feroz sem ser suicida.