Criar um trabalho que atravessa gerações é desafiador. No caso de Fernanda Abreu, é sintoma de pioneirismo. É fresh. Descolado. E como ela contou ao escutai: “É tudo o que um artista pode querer: ver suas músicas de novo sendo descobertas.”
A icônica frontgirl do Blitz se aventurou nas pistas ao lançar o cultuado Sla Radical Dance Disco Club (1990) como primeiro disco da carreira, sendo mãe de uma geração declubbers brasileiras e se propondo a estudar a música eletrônica em uma roupagem única no Brasil. Posteriormente, foi nessa curiosidade de conhecer a canção, trabalhar com milhares de artistas de diferentes contextos e, claro, sem deixar de lado o molejo dagarota carioca, suingue sangue bom, é que surgiria o Da Lata — terceiro álbum dela que, agora em 2025, completou seus 30 anos e, de presente, virou documentário, livro e turnê comemorativa.
À época, para muito além de um trabalho pioneiro na mescla do pop, do funk e do samba, os visuais de Fernanda, com inspirações que iam do futurismo tecnológico ao imaginativo trabalho de nomes que traduzem a identidade brasileira entre regionalidades clássicas e ideias abstratas, como Bispo do Rosário, reforçaram a consistência do disco.
A cereja do bolo, uma ambiciosa (o orçamento sempre desafiava as propostas criativas da cantora, mas a gravadora apostou) turnê mega produzida para divulgação da obra ajudou com que o disco entrasse para a história da música brasileira. E esse processo, à época, foi profundamente documentado por Paulo Severo — diretor e parceiro artístico de longa data de Abreu.
Em entrevista ao escutai, Severo contou que a ideia de transformar esses arquivos guardados em algo maior surgiu para comemorar os 25 anos do disco, mas que a pandemia atravessou o processo e, num rompante, Fernanda retomou o contato em 2024 com a proposta de não deixar o filme morrer: “Quando ela gravou o Da Lata, nós filmamos tudo para fazer um vídeo release de 20 minutos para o lançamento do disco. Só que eu ficava lá o dia inteiro no estúdio filmando. Tinha muito material. Aí eu falei: Fernanda, a gente tá com essas fitas todas, o disco vai fazer 25 anos [em 2020], vamos fazer um documentário. Está na hora. Ela adorou a ideia, comprou a ideia.” A ideia, enfim, veio ao mundo numa união de forças entre a prefeitura do Rio de Janeiro, Universal Music Brasil, UBC e TV Zero, além da produtora de Abreu, a Garota Sangue Bom.
Essa vontade de aproveitar e ressignificar tanto conteúdo é só um dos fatores que tornam o documentário tão rico: hoje, mais do que nunca, o imediatismo é fator que condena e seleciona o aproveitamento da arte pelo público. “Acho que hoje a gente vive um momento de muita velocidade, de muita efemeridade. É tudo dez minutos, cinco minutos, dois minutos, trinta segundos de ouvir música e mudar. Mas se a gente também não apresentar essas coisas de uma maneira diferente, eu acho que também não tem muita graça fazer o que todo mundo já faz.”, pondera Abreu ao falar sobre o pop atual.
Em tempos de tantos espetáculos-tributos, charts, músicas pensadas para durarem um reel e oportunidades vindas pela contagem de seguidores nas redes sociais, parece ser cada vez mais desafiador produzir algo que se comprometa só com a visão artística. Se, à época, Fernanda já havia sido desencorajada por trabalhar com a black music e produzir um projeto multifacetado com sonoridade e “cara” longes do mainstream, hoje, ela acredita que teria sido ainda mais custoso colocar o Da Lata em circulação: “Para você apresentar uma música, tem que ser dentro do Spotify. Talvez fosse um disco que não coubesse muito nessas fórmulas”.
Assistir o processo de criação do manto de 57 (!) kg que ela usa no clipe de Veneno da Lata, posar nua para o encarte ou decidir por um top que cobria seus seios com duas panelas de metal foram coisas irreverentes para a época. Pensar nisso atualmente, em como tudo ainda parece tão ousado e criativo no universo que transpassa conceitos do que é utilitário, cotidiano, de pouco valor (o clipe, aliás, foi gravado em uma fábrica de alumínio e contou com colaboradores participando do projeto audiovisual) e realoca tudo isso no lugar de destaque e preciosidade ainda é uma tarefa magistral. Não ficou cafona ou datado — parece mais interessante do que nunca pensar em como um material ordinário pensado já com fim decretado, a lata, fez virar tão simbólico seu uso a ponto de, na verdade, ser eternizado.

Para além da qualidade dos registros de Severo, que a acompanhou durante todo o processo, por 1h14, revisita-se a caminhada de Fernanda a até o Da Lata. Entre a inquietude da cantora e os desafios de se lançar, lidar com as pressões de mercado e da gravadora, ela, à época, poderia ter ido por outros caminhos — os que a distanciavam de espaços do underground, do non-grato. “Eu acho que a sociedade brasileira ainda discute muito sobre feminismo, sobre o preconceito que o funk carrega. Ainda tem muito até hoje, muito por conta do racismo estrutural, muito mais do que pela estética musical. Então eu acho que ele ainda fala com as pessoas hoje, ainda se comunica”, é como enxerga Abreu.
As letras, ora em clima de praia e tarde no rio, ora lembrando do berço desigual de onde ela canta, também fazem do disco um trabalho atual e revisitar esses contextos no documentário a partir dos relatos dela e do time com quem trabalhou (todas as pessoas foram convidadas a participar, um ponto que relembra esse esmero com conhecer o processo criativo por completo. Somado a isso, pode-se ver que ela buscou mais do que apresentar o gênero e o estilo como seu ou emular essas sonoridades, mas tentou, em sua maior parte, trabalhar com quem vinha criando da raiz, chave para a autenticidade do som: cheio de camadas, cordas, percussão, eletrônico.
“Acho que essa maneira do documentário, do livro e do álbum é uma maneira, de certa forma, até revolucionária para hoje de apresentar esse disco. Porque no mundo digital que a gente tá vivendo, da inteligência artificial, de tudo estar na nuvem, você tem um livro para pegar na mão, você tem um álbum para pegar na mão, você tem um documentário que explica a construção conceitual e musical de um álbum. Eu acho que é uma maneira diferente.”
No fim, o trabalho de “Da Lata: 30 Anos” também demonstra o carinho de Fernanda pelo próprio legado. Revisitar, armazenar e pensar em novas formas de apresentá-lo ao público são sinais da capacidade longeva de um disco de três décadas atrás, o que, ao se ler, pode não soar como um passado tão distante, mas, a cada dia que passa, parece ser um teste do tempo para qualquer artista que precisa submeter suas obras ao crivo algorítmico.