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“A Substância” é extraordinariamente grotesco, eufórico e hipnotizante

A Substância é uma autofagia do ego em um mundo obcecado pela juventude

“A Substância” (ou The Substance em seu título original) impõe um novo marco no body horror, explorando temas complexos a respeito  do envelhecimento feminino. Elisabeth Sparkle, uma ex-estrela de cinema esquecida, vê sua carreira e vida pessoal atingirem uma data de validade aos 50 anos.

Após um acidente de carro, ela se submete a um procedimento estético clandestino que cria uma versão jovem e perfeita de si mesma, chamada Sue. O filme se desenrola em uma narrativa grotesca e visualmente hipnotizante, à medida que Su começa a (literalmente) devorar a identidade de Elisabeth, em uma crítica feroz à obsessão pela juventude.

Elisabeth Sparkle, vivida por Demi Moore, é uma ex-estrela de cinema, vencedora de um Oscar que ninguém mais lembra pelo que, e agora sente na pele o que significa ser esquecida. Sobrevivendo aos 50 anos com um programa de fitness na televisão, no estilo Jane Fonda, porém ela já não é mais adorada. No início do filme, essa trajetória de Lis Sparkle é ilustrada brilhantemente pela diretora francesa Coralie Fargeat, ao mostrar a instalação de sua estrela na Calçada da Fama. A celebração inicial em torno dela logo dá lugar à deterioração, conforme a estrela vai se rachando e sujando, até ninguém mais notar que estão pisando sobre ela.

Elisabeth sempre teve seu ego atrelado à adoração pública e entra em choque ao ouvir o diretor da emissora, interpretado por Dennis Quaid, em uma conversa telefônica em que afirma que Lis precisa ser aposentada, referindo-se a ela com termos grosseiros e machistas. Uma das cenas mais bem feitas do filme é o confronto entre Sparkle e o diretor sobre sua demissão. A câmera explora todos os detalhes da cena, apresentando o caráter do personagem sem precisar dizer nada sobre seu histórico, fazendo com que o desconforto, nojo e revolta sejam palpáveis na sala de cinema. Tão abalada pela situação, Sparkle sofre um acidente de carro, que cruza seu caminho com uma intervenção estética.

Essa intervenção estética, totalmente clandestina, é justamente “A Substância”, um procedimento onde a pessoa injeta um líquido, resultando em uma versão ideal, jovem e perfeita de si mesma. 

A Substância” é um filme extraordinariamente grotesco, eufórico e hipnotizante. A cena em que Elisabeth dá à luz sua “melhor versão”, chamada Sue, é completamente chocante mas apenas o começo. A diretora vai além, explorando extremos completamente chocantes. A sutileza, geralmente uma qualidade positiva, aqui dá lugar a uma abordagem agressiva e provocativa, que Coralie Fargeat domina com maestria.

O filme, em linhas gerais, aborda a tirania dos padrões de beleza, mas mergulha nos detalhes da auto desvalorização. Trata da repulsa de uma mulher por si mesma e da repulsa dos outros por uma mulher que está envelhecendo. Aborda a misoginia mais crua e direta, como nas atitudes do diretor da emissora, e também a misoginia internalizada, aquela voz que sussurra agressões contra a própria mulher. Lis Sparkle se torna sua própria vilã, e a escolha de Demi Moore, conhecida por preservar sua beleza, acentua a crueldade da personagem e do que Sue, sua versão perfeita, faz com ela.

Interpretada de forma fantástica por Margaret Qualley, Sue encarna o desprezo juvenil por tudo o que não é jovem e belo, a ausência total de limites e a sensação de que tudo é permitido e devido. Como ambas são a mesma pessoa, algo constantemente reforçado pela substância, o filme apresenta uma espécie de autofagia, com Sue devorando Elisabeth, quase literalmente, de maneira repugnante. A versão idealizada de Lis destrói sua versão real, deformando-a progressivamente em algo monstruoso. 

Quem nunca passou tanto tempo fantasiando com o que poderia ser para fugir do que realmente é? 

A habilidade de Coralie Fargeat na direção é impressionante. A maneira como o filme é filmado é espetacular, com a câmera captando detalhes ou distorcendo as pessoas, enquanto brinca com as cores fluorescentes de Los Angeles. A edição de som amplifica cada ruído, transformando o filme em uma experiência sensorial completa, como uma eterna paralisia do sono, remetendo ao estilo de Stanley Kubrick em “Laranja Mecânica”.

Embora o elenco seja americano, A Substância é um legítimo representante do cinema extremo francês. O filme subverte a exploração da imagem feminina, tornando-a extraordinariamente complexa em seus detalhes. As cenas de Sue no programa de fitness, com a câmera focada em cada detalhe do corpo, fazem com que ela pareça composta por partes desejáveis, transformando-a de ser humano em um pedaço de carne.

Os vinte minutos finais desse sonho lúcido de 2h30 ilustram as monstruosidades que podem surgir dentro de uma mulher submetida a essa tirania. Porém, todo o controle formidável que Coralie tinha demonstrado até então se perde em um desfecho contraditório,  fazendo com que  toda aquela meticulosidade da construção das cenas anteriores desembocasse em um final quase que  improvisado.  

Independentemente de se gostar ou não do desfecho, “A Substância” é um filme completamente inovador, único em sua proposta, e fica claro por quê é um dos filmes mais comentados do ano.

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