A história do álbum ‘El Mal Querer’ da Rosalía

Inspirado no livro “Romance da Flamenca”, romance de autor desconhecido, Rosália traz “El Mal querer” como uma forma de recontar a história dentro da visão feminina
Rosalía
(Créditos/divulgação Columbia Records)

“Romance da Flamenca” é um romance datado do século 13, o autor até hoje é marcado como desconhecido, livro originalmente escrito em occitana, língua que deu origem a língua espanhola. Conta a história de um triângulo amoroso, em que a mulher é fatalmente a vítima e como a maioria dos livros da era medieval, a história não tem um fim.

Incorporando a obra, Rosalía conta uma história de amor e tragédias, onde prevê o seu próprio destino embarcando em uma jornada de autoconhecimento, necessitando retomar seu poder para si própria. Por isso mesmo o experimento em “El Mal Querer” vai do pop ao flamenco, fui entre os gêneros da forma mais fiel que possa retratar os sentimentos conflituosos de sua protagonista. Definindo-se e redefinindo-se, em uma brincadeira com muitas palmas e as cordas agitada de um violão.

MALAMENTE (Cap. 1: Augurio)

Tem como tema principal a descoberta da mulher através de uma cigana, que o seu casamento marcado tinha grande chances de terminar em desgraça. Logo nos primeiros versos se releva o destino da personagem principal [Esse vidro estilhaçado/ Percebi como rangia/ Antes de cair ao chão/ Já sabia que se quebrava…] – uma metáfora ao possível mal que vai acontecer após o casamento.

QUE NO SALGA LA LUNA (Cap.2: Boda)

Temos a visão completa do casamento, uma boda rica, cheia de diamantes, amores prometidos, o desejo e o amor virginal, o noivo, eu lírico, pela própria voz da Rosália, canta: [O dia que a encontrei/ Tenho sinalado a ponta de navalha/ Prima, sobre a parede/ Tenho sinalado a ponta de navalha]. A ameaça, os objetos afiados se misturam as promessas de amor. [Se há alguém aqui que se opõe/ Que não levante a voz/ Que a noiva não o escute/ Que a Lua não saia que não tem para que]. O noivo é capaz de ameaçar até as próprias forças naturais para manter a mulher como objeto.

PIENSO EN TU MIRÁ (Cap.3: Celos)

O marido, eu lírico pela própria voz da Rosáliaa, canta sobre sua mulher: [Fico com medo quando você sai/ Sorrindo para a rua/ Porque todo mundo pode ver/ Suas pequenas covinhas que saem.]

A partir de então começa um canto obsessivo, sobre relacionamento abusivo. Ele sente ciúmes da água que toca nos lábios da noiva, do ar que passa pelos cabelos da mulher.

DE AQUÍ NO SALES (Cap.4: Disputa)

Na quarta faixa, temos as primeiras ameaças, O homem começa a mostrar sua verdadeira face [Dói mais em mim/ Do que te magoa/ Não se equivoque comigo]. Após isso, as primeiras agressões físicas: [Com as costas da mão/ Deixo muito claro para você.]

A voz da Rosália para, e palmas começam, representando a agressão físicas, e gemidos de dor de mulher.

RENIEGO (Cap.5: Lamento)

A voz da Rosália dá abertura para o lamento de uma mulher agredida: [Eu rio por fora/ E choro por dentro]. Ela renega ao amor obsessivo.

PRESO (Cap.6: Clausura)

Um pequeno relato de uma mulher que “desceu ao inferno” (um relacionamento abusivo) e saiu com “dois anjos” (dois filhos). E no fim, ela reflete: [Te prende sem você perceber/ Você percebe quando você sai/ Você pensa, como eu cheguei aqui?]. A mulher já está presa em meio à um relacionamento abusivo

BAGDAD (Cap.7: Liturgia)

Começa com um sample de Cry Me a Rive, do Justin Timberlake, e só por aí você sabe para onde a música vai. Bagdad, que é nome de cidade santa, mas também da maior boate de strip da Espanha. O eu lírico canta: [E vai queimar, se continuar assim/ As chamas vão para o céu para morrer/ Não há mais ninguém lá fora/ Não há mais ninguém, batendo palmas]. Não há salvação a não ser sair da situação sozinha. E a mulher de mãos juntas cantando o Flamenco, parecia que rezava aos céus pra sair dessa situação.

DI MI NOMBRE (Cap.8: Éxtasis)

Rosalía se vê atada a esse inferno conjugal, atada a cama do seu marido abusivo. E ela pede para ele dizer seu nome em meio ao sexo, pois é só nesse momento em que se ela se sente valorizada.

NANA (Cap.9: Concepción)

Ela percebe que está grávida do seu marido abusivo, e ela lamenta por ter que conceber um filho em meio a esse relacionamento abusivo. Ao meu ver, a música fala sobre abortar esse filho de forma consciente, para evitar que ele sofra: [Na porta do céu eles vendem sapatos/ Para os anjinhos que estão descalços].

MALDICIÓN (Cap.10: Cordura)

A mulher toma consciência de seu estado, e entra o título do álbum, o “El Mal Querer”. O amor que leva a morte, a loucura, a dor: [Ah, o amor/ Em um momento eu desejo/ Estar louca e não amar/ Porque o amor causa dor/ Dor que não tem fim/ E os loucos vivem sem ela].

A mulher decide fugir desse relacionamento: [Me disseram que não há saída/ Por esta rua estou indo/ Me disseram que não há saída/ Eu tenho que encontra-la/ Mesmo que isso me custe minha vida/ Ou mesmo se eu tiver que matar].

E ela cumpre sua promessa, em meio a barulhos de facas e carne sendo cortada, ela mata o homem: [Eu deixei uma trilha/ De sangue pelo chão.]

Uma trilha que leva ao primeiro dia, ao vidro quebrado, como vaticínio desse amor fracassado.

A NINGÚN HOMBRE (Cap.11: Poder)

Rosalía enfim se liberta, e grita um manifesto: [Para nenhum homem eu consinto/ Que ele emita minha sentença/ Só Deus pode me julgar/ Só para Ele eu devo obediência]. E declara que amor era lindo, até se tornar uma ameaça: [Até você ser o carcereiro/ Eu era sua, companheiro/ Até você ser o carcereiro]. Mas promete nunca esquecer desse amor, que marcou ela de tantas formas negativas, e que vai carregar suas consequências pelo resto da vida “como uma tatuagem na pele”.

Se consolidando em meio de grandes nomes da música pop atual, Rosalía segue criando uma linha criativa autoral, ela conclui toda narrativa proposta em “El Mal Querer” com maestria vista apenas em grandes nomes da música, provando – sem nem ao menos precisar – ser uma cantora que consegue traduzir ritmos diversos ao seu som do flamenco.

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