Não é de hoje de Beyoncé decidiu abandonar os conceitos falhos da indústria musical e a comercialidade para focar seu trabalho naquilo que realmente gosta de fazer. Em seu novo álbum RENAISSANCE, isso não podia ser diferente. Por meio de 16 faixas a cantora nos guia de de forma muito clara pela sonoridade dos anos 70 ao 90, passando pelo disco do clássico Studio 54 e aterrissando de forma certeira na cultura ballroom.
Para os fãs mais intensos da artista, o novo projeto passeia de forma muito coesa e fácil de identificar pelos estilos já apresentados por ela durante toda a carreira. Há os fortes vocais muito explorados e harmonizados, os elementos instrumentais que marcam sua forte conexão com o hip-hop, R&B e o pop, e ainda a sonoridade característica e étnica apresentada em suas últimas obras, reforçando e homenageando sua ancestralidade e raça.
Outro ponto muito característico e prazeroso das últimas obras da artista é como ela estrutura a musicalidade dos seus projetos. Desde seu álbum homônimo, Beyoncé estabeleceu a fluidez entre as músicas quase como um padrão. Faixa a faixa, as músicas se conectam umas as outras dando uma deliciosa sensação de continuidade que agrada até aos ouvidos mais descuidados.
RENAISSANCE é um ballroom com B de Beyoncé
Beyoncé é muito inteligente dentro de sua musicalidade e criou em seu novo lançamento uma atmosfera única que transita com muita coerência entre os principais estilos dançantes que marcaram as décadas de 70, 80 e 90, principalmente dentro da cultura afro-americana e LGBTQIA+.
Em RENAISSANCE é possível separar as músicas quase que em blocos quando o assunto é a sonoridade distinta. Estes blocos que se unem em uma obra contínua e “longa” para os padrões atuais da indústria na era dos streamings, fluem com tanta empolgação e de forma tão divertida compondo uma obra singular e madura — que soa despretenciosamente pretenciosa.
Quando os materiais promocionais do projeto começaram a ser lançados, já estava óbvio o caminho que a cantora iria seguir. A foto promocional que ilustra a capa do álbum, com a artista montada em um cavalo com pele de globo espelhado, entregava perfeitamente a celebração à dance e disco music.
Esta celebração é a principal característica de faixas como “VIRGO’S GROOVE” (com seus mais de 6 minutos de duração), “CUFF IT” e “PLASTIC OFF THE SOFA“, trazendo em sua composição sonora o encontro do funk, disco e electro-pop, reforçados por parceiras de peso nesses ritmos, como Grace Jones & Tems na cativante “MOVE“. Faixas que sem sombra de dúvidas relembram os áureos tempos da discoteca encabeçados por nomes de ouro da música negra como Donna Summer e Prince.
O movimento de reencontro da disco music com a contemporaneidade não é de fato uma novidade. Ele já foi revisitado neste novo momento da música pop por artistas como Dua Lipa, Lady Gaga e a veterana neste estilo, Kylie Minogue. Porém, aqui, ele renasce em sua forma mais pura e consagra seus principais criadores: os artistas negros das décadas passadas.
O projeto é ainda uma homenagem a Jonny Knowles, tio da cantora, homem negro, gay, vítima de HIV — citado por ela durante seu discurso no GLAAD Media Awards de 2019 — e é provavelmente por meio desta inspiração que Beyoncé se entrega às nuances do tema chame o ballroom. O bloco marcado pelas faixas “ALIEN SUPERSTAR“, “PURE/HONEY“, “COZY” e “SUMMER RENAISSANCE” é feito para quem deseja se entregar ao vogue e servir às categorias glamourosamente artísticas dos balls.
Há ainda as canções que refletam os anos 90 em seu puro estado disco, como o lead single “BREAK MY SOUL“— sampleada do hit dance da Robin S,”Show Me Love” — e a incrível “AMERICA HAS A PROBLEM“.
Uma artista que revisita o passado para renascer no futuro
A estreia de Beyoncé aconteceu há 24 anos, em 1998, com o debut das Destiny’s Child. Se contarmos só a carreira solo, em 2003, são 19 anos. O que Beyoncé continua fazendo, mesmo após tanto tempo, é demonstrar sua total paixão e dedicação pela música. Poderíamos abordar inúmeros fatores que a tornam uma estrela única, mas se nos concentramos só na música, RENAISSANCE nos diz tudo.
O mergulho na própria história se formaliza em um trabalho não apenas muito maduro e coeso, mas seguro do que pretende ser, e acerta. Há um pouco de cada álbum de Beyoncé aqui, não as mais comerciais e famosas, mas nas entrelinhas. Quem esteve atento aos deep cuts de sua carreira se derrete em vocais imaculados que flutuavam pelo Dangerously in Love e por batidas irreverentes e inesperadas que marcaram o B’Day. Com a força e potência de Sasha Fierce, a organicidade instrumental de 4, o groove de algumas faixas como “Blow”, de seu self-titled e a maturidade de Lemonade. Tudo isso sem perder a graça para se divertir.
Mesmo quando Beyoncé vai na contramão de hits abundantemente comerciais que a fizeram despontar na indústria, quando se despe de álbuns visuais que a deixaram na boca do povo por tanto tempo, quando dispensa lançamentos surpresas que já quebraram o iTunes e finge diluir a antecipação com um single de antecedência, ela ainda se mantém no momento. Nadando contra correntes que ela mesma popularizou, ela segue com um impacto imaculado na indústria.
Tudo ainda soa como novidade, o jeito que ela se coloca na arte, a maestria com que comanda seus trabalhos: todos os olhos ainda estão voltados pra ela, todos os ouvidos ainda são dela. Onde experimenta ou nos caminhos mais seguros que já se provaram acertos, Beyoncé é o sinônimo de qualidade que já estamos familiarizados — e ela o faz sem decepcionar. São 20 anos na indústria da música e a cada trabalho nossa reação continua a mesma.
Não se engane em achar que só porque o álbum não é tradicionalmente comercial que ele não é um trabalho estratégico. Estamos falando de uma workaholic musical. Mesmo depois de 6 anos de hiato (salvo o período do The Gift) o novo projeto demonstra, com clareza e muita assertividade, que mesmo na pandemia, sendo mãe de três crianças, ela continuou trabalhando e estudando suas raízes e o comportamento dos consumidores de música.
Desfrutar a excelência. Esse é o privilégio com que ela nos presenteia sempre que decide nos mostrar um pouco mais do que ela é capaz de fazer. RENAISSANCE é cativante e pouco comercial, mas estratégico até o fim. Assim como nos projetos anteriores — self-titled (2013) e Lemonade (2016) —, a artista evoca algo que seus fãs menos intensos talvez não se conectem de primeira, mas se desafiam a ouvir.
Padronizado como “Act I”, o álbum é uma prova de que Beyoncé está segura do que quer e que não encara regras passageiras como sua linha de direção. Com pouquíssimas canções de cunho comercial — fato que pode até desagradar os fãs do pop tradicional —, a cantora continua sua trajetória contínua de tirar o ouvinte da zona de conforto.
RENAISSANCE, como o próprio nome sugere, se aproveita do renascimento da cultura ballroom, por meio de produções como Pose e o incrível reality Legendary da HBO e se apodera disso para entregar ao público cada vez mais fã da house music, um material completo, fresco e que apesar da excelência já conhecida da artista, mais uma vez, difere de tudo que ela já fez. E este é só o primeiro ato.