Crítica | Carne Doce, “Cererê”

Álbum considerado seguro em relação a seu antecessor, Cererê mostra que Carne Doce permanece fiel às suas origens, mas procura tatear em busca do novo para suas composições.

Encontrar um álbum de fotografias antigas, há muito perdido. Limpar uma camada de poeira e deparar-se com fotografias um pouco desbotadas, mas que recuperam a cor à medida que essas memórias são remexidas. De certa forma, é uma das interpretações possíveis para Cererê (2024, Independente), quinto álbum da carreira de Carne Doce. Ainda que a sonoridade característica do quinteto permaneça preservada mudanças drásticas, a poesia de Salma Jô, antigamente proveniente de um universo particular da cantautora, se expande com segurança para o espaço pop que tentara alçar em Interior (2020, Independente). Se outrora o quinteto prezava pelo experimental, como no aclamado Princesa (2016, RedBull Studios), agora se vê um grupo sério cujo amadurecimento se firma há seis anos, desde o lançamento de seu terceiro disco.

Pode-se dizer que o novo registro é um álbum que reflete os 10 anos de pesquisa de Carne Doce enquanto quinteto, bem como sua trajetória — uma verdadeira montanha russa. Registro mais sóbrio desde Tônus (2018, Natura Musical), a banda investe numa sonoridade abafada, que evoca a sensação de inferninhos escuros, cuja única fonte de luz são os feixes coloridos, o calor de corpos próximos. Mais do que isso, há uma palidez fugaz nos acordes que tecidos por Macloys Aquino e João Victor que, de certa forma, consegue capturar bem as memórias e sensações de quem vagueia por esses lugares. Entretanto, a primeira metade do álbum se desenrola sem urgência, quase como se brincasse com a dualidade da efemeridade marcante das noites sem fim.

Tal dualidade pode ser compreendida por diversos fatores que permeiam o álbum. Como o refrão de Noite dos Tristes (Na noite dos tristes revivendo o mistério / De sentir essa alegria transbordar) ou na própria música que leva o nome do álbum, Cererê. Atualmente centro cultural, o espaço tem influência central para toda uma geração de músicos goianienses que buscavam referências para além do sertanejo, e ali encontraram possibilidade de trocas, um vislumbre do que poderiam vir a ser.

Escapando para um plano aberto, mas ainda abafado e apertado, Metagreste aparece como a irmã mais nova de Sertão Urbano (Carne Doce, 2014, Independente), que anunciava o lamento que é descrito nessa faixa: Já não tem sertão pra mim / Tudo agora é urbano e feio. A guitarra acrescida do baixo de Aderson Maia e a bateria ritmada de Fred Valle estabelecem uma cena de um cerrado desolado, castigado pela fumaça das queimadas e invadido pelo concreto cinzento, os enormes prédios da metrópole. Se na faixa mais antiga havia celeridade impaciente em se comunicar com o ouvinte, agora o eu lírico se encontra abatido frente à distopia cyberpunk proporcionada por uma existência real e hiperconectada.

A euforia do início da noite se esvai. Seguido da calmaria resignada da faixa anterior, Na Lona e Latada transportam o ouvinte para os tempos de instrumentais comedidos e letras doloridas. Ao longo das 10 faixas que compõem o álbum, são duas das que soam mais “abertas” que as demais, também as únicas que retratam a melancolia de um amor frustrado, marca registrada do grupo. A amargura é diluída para Suspiro, faixa belamente adornada pelos arranjos de cordas que abrem espaço para a poesia que se mostra devagar, mas que ainda resguarda um pouco de mistério (Tudo comunica / Que a nossa briga / Ainda ressoa / No próprio silêncio).

Diferente de seus registros mais antigos, dessa vez a banda parece apostar em uma sonoridade menos catártica e composições minimalistas, mas que seguem sendo complexas ao seu modo. Afinando o tempo de silêncio, cada instrumento apresenta um universo convidativo a se explorar junto e separadamente. As composições, ora contidas, ora escancaradas, permite que o ouvinte imagine cenários que vai desde uma girlboss lasciva a uma figura depressiva e introvertida, apesar das guitarras brilhantes que evocam uma sensação oitentista.

Tudo isso ainda deixa espaço para a raivosa e rock’n’roll Festa, faixa mais enérgica do registro, onde a voz de Salma cresce de forma linear, apresentando uma letra direta (Eu perdi muito tempo me levando a sério / Nessa comédia nunca existiu nenhum mistério / Servir cinismo é só o que essa gente faz / E agora finalmente seremos iguais). Aqui é onde a tensão construída ao longo do registro atinge o ápice, também graças à percussão agressiva de Fred.

Faixa mais doce do álbum, Despedida é como ver os primeiros raios de sol e o ar fresco e gélido depois de uma longa noite numa casa de show. É a faixa que mais se assemelha ao som experimental antigamente explorado pela banda, com seus mais de 5 minutos, sendo mais de 2 uma bela conversa entre os acordes de João e Macloys, que termina o disco com seu violão. Não precisaria que a última música levasse o nome para sentir que em alguns momentos o grupo parece querer se despedir de alguma coisa.

Álbum considerado seguro em relação a seu antecessor, Cererê mostra que Carne Doce permanece fiel às suas origens, mas procura tatear em busca do novo para suas composições. Compreender que o passado e o presente caminham juntos e tecer a melodia que se desenrola como se contasse uma história, as infindáveis e velozes noites, a saudade, fragilidades. Tais observações se fazem presentes na capa do álbum, fotografada no próprio Centro Cultural Martim Cererê. Trata-se de um álbum que faz acenos ao que Carne Doce já foi, mas que busca diversificar dentro de seu próprio universo.

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