Marcando o início de sua fase mais sofisticada musicalmente, Young Americans, o nono álbum de estúdio de David Bowie, completa 50 anos. Considerado o disco de passagem entre a fase mais punk/glam e os anos de amadurecimento musical, o trabalho mostra a versatilidade de Bowie e sua habilidade em criar novas atmosferas visuais e sonoras como um verdadeiro camaleão, como ficou conhecido.
Lançado em 1975, Young Americans é uma linda homenagem do artista à música negra, uma das suas paixões, e traz funk, soul music e R&B da mais alta qualidade. Para o disco, Bowie reuniu uma banda com músicos originais das comunidades funk e soul, como Luther Vandross, um dos grandes conselheiros do álbum, que participa da música “Fascination”, além do baterista Andy Newmark e do guitarrista porto-riquenho Carlos Alomar, com quem viria a ter uma parceria de trabalho de 30 anos. A big band para o disco tem ainda Tony Visconti no baixo e na produção, Mike Garson nos teclados e piano, David Sanborn no saxofone, Ava Cherry nos vocais de apoio, Emory Gordy Jr. no baixo e um coral formado pelo The Blue Jean Committee. Além disso, há participações especiais de ninguém menos que John Lennon e Paul McCartney na versão de Bowie para a canção dos Beatles, “Across the Universe”, e Lennon e Alomar em “Fame”.
Gravado entre as folgas da turnê de Diamond Dogs em 1974, Young Americans traduz bem o conceito que hoje conhecemos por “eras”, vastamente utilizado por artistas pop da atualidade como Taylor Swift e Beyoncé, por exemplo. Conceito esse que não seria possível da forma que entendemos sem David Bowie. Desde sempre obcecado por teatro, música, cinema e artes no geral, Bowie construiu muitas personas e universos ao longo de sua carreira. Ao mesmo tempo em que criava atmosferas inovadoras a cada álbum, tinha uma facilidade enorme de enterrá-las para que surgisse algo ainda maior.
Entre os principais alter egos bowieanos está Ziggy Stardust, um alienígena andrógino que se torna uma estrela de rock. Uma figura glam, excêntrica e carismática, que é marcada por uma tragédia e uma relação destrutiva com a fama, como metáfora para a decadência dos artistas do mundo do rock. Descrito como o “messias do rock”, Ziggy vem de outro planeta para salvar a Terra por meio da música, mas acaba sucumbindo à indústria musical. Com uma sonoridade próxima do punk e do glam rock, Ziggy Stardust é a figura que dá vida ao álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars (1972), responsável por catapultar Bowie aos holofotes da fama.
As muitas faces de David Bowie incluem ainda Aladdin Sane, uma versão introspectiva de Ziggy, ainda no universo glam e que aparece no álbum que nomeia a personagem, de 1973; Thin White Duke, uma persona mais sombria e sofisticada, marcada por um visual elegante, que vem no auge de sua luta com as drogas e se mostra no álbum Station to Station, de 1976; e Major Tom, que retorna em vários momentos na obra de Bowie, mas que tem seu marco no disco Space Oddity, de 1969, enquanto um astronauta perdido no espaço em uma missão da NASA, simbolizando a desconexão entre o ser humano e o mundo ao seu redor.
Em Young Americans, o camaleão do rock se transfigura em um soulman, o que chegou a chamar de plastic soul, termo criado nos anos 1960 por músicos negros para falar sobre brancos que fazem soul music. Ao contrário dos artistas de rock da época, que viam com maus olhos músicos do gênero que migraram para outros estilos, Bowie nunca fez esse tipo de crítica, sempre almejou explorar novas sonoridades. Em uma de suas biografias, escrita por Marc Spitz, o autor descreve como o artista se preocupou em trazer músicos que originalmente atuavam na black music como forma de enriquecer a sonoridade de sua obra.
O nono álbum de estúdio de David Bowie traz uma sonoridade influenciada por nomes como Martha Reeves & The Vandellas, The Temptations e James Brown. É considerado um marco na transição de sua fase mais experimental para uma abordagem mais comercial, porém sem perder a originalidade. Young Americans carrega ainda uma nova gama de temas, com questões mais íntimas e sociais, como o amor, a juventude e a busca por uma identidade na América.
Essa crise da identidade moderna no “american dream” é retratada em faixas como “Across the Universe”, “Fame” e a própria faixa-título do disco. Também é de grande notabilidade a mudança visual e estética que marca a nova era da carreira de Bowie, rompendo com a sujeira dos anos glam para uma imagem mais “cool”, com vestes mais simples e sofisticadas, representando sua adaptação ao novo som.
Young Americans pode ser visto como o primeiro grande ponto de inflexão na “linha do tempo” das eras de Bowie. Antes, seus alter egos se alinhavam a temas específicos. Agora, Bowie começa a consolidar cada fase artística como algo próprio de seu estilo sonoro, visual e também filosófico. A sua era soul e funk viria a reverberar, inclusive, em trabalhos futuros como em Low (1977), em que mergulha no experimentalismo mais eletrônico.
De forma geral, é possível afirmar que Young Americans coloca Bowie como o precursor do conceito de “eras”. O trabalho, em especial, marca a mudança de sonoridade de forma mais brusca, assim como o visual e a temática. Nesse sentido, o camaleão do rock se estabelece como um artista multifacetado, que não temia em se reinventar a cada novo álbum, a cada nova fase, marcando as raízes de um conceito que viria a se tornar praticamente a regra na indústria musical.