Crítica | Gossip, “Real Power”

Depois de 12 anos, o trio Gossip liderado pela vocalista Beth Ditto ressurge com indie amadurecido, homenagem ao proto-punk do The Stooges e uma turnê que passa pelo Brasil

Após doze anos de seu último disco, o trio de dance-punk Gossip finalmente mostrou ao mundo o seu sexto álbum de estúdio, Real Power. Liderada pela vocalista Beth Ditto, a banda traz sua turnê ao Brasil em 2025 para um show no C6 Fest, em São Paulo. Após dois hiatos, de 2016 a 2019, e durante a pandemia, o grupo marca o seu retorno com um clássico álbum indie, contornado por certa maturidade e algumas perdas pelo caminho.

Real Power foi lançado via Columbia Records, conta com 11 faixas que acabam rapidinho ao longo dos seus 41 minutos. O trabalho é uma homenagem de Beth Ditto e companhia ao disco considerado precursor do punk, o Raw Power, de Iggy Pop and The Stooges (1973). Em sua nova aparição pública, a banda de Ditto retoma suas raízes com punk de balada indie dos anos 2000. Embora não seja um “revival do revival”, existe uma aproximação com o que a galera do indie sleaze vem fazendo mais recentemente. 

Quando o Gossip explodiu em 2006 com seu premiado terceiro disco, Standing in the way of control, a cena indie rock fervilhava mundialmente. Não só bandas mainstream como The Killers e The Strokes faziam sucesso, como também as mais alternativas como Yeah Yeah Yeahs, Le Tigre, Goldfrapp, La Roux e Lykke Li. Até o Brasil entrou na rota mundial do indie com o Cansei de Ser Sexy (CSS), que teve músicas em filmes, turnês mundiais e passou pelos maiores festivais do globo como o Glastonbury e o Coachella. O contexto ganhou tantas camadas que foram surgindo muitos sub-gêneros: indie pop, electropop, indie folk, electroclash, post punk revival e uma série de nomes combinados que acabaram sendo abarcados sob o grande guarda-chuva do indie rock.

O contexto sociocultural dos anos 2000 marcava uma tendência coletiva de abertura. A ascensão da internet e a digitalização da música democratizaram não só o acesso à música, mas também à produção e distribuição musical. Muitas bandas surgiram em plataformas como MySpace e alcançaram status global, vide os Arctic Monkeys. Foi um resgate digital da anarquia punk que colocou em voga novamente conceitos como “faça você mesmo”. Em várias direções: faça sua música, suas roupas, seu blog. Assim, temas sociais, antes barrados pela mídia, também acabaram escapando pelas frestas. A cena indie era sobre música, mas também trazia temas como feminismo, direitos LGBTQIAPN+ e antirracismo. 

Era um chamado à autenticidade com a promessa universal da internet como algo que viria a marcar o fim da era das gravadoras que dominavam a criatividade dos artistas, dos jabás das rádios e de toda a lógica da indústria musical. Essa era a sensação coletiva, mas que logo o sistema daria um jeito de contornar. 

O Gossip surge desse caldeirão cultural, sendo Beth Ditto uma grande porta-voz da diversão, mas também da diversidade, pois trazia e traz consigo símbolos de orgulho: ela é abertamente lésbica e foi casada por anos com uma mulher, além de ser uma pessoa gorda que levanta a bandeira da moda plus size, tendo lançado coleções com esse foco. Tudo isso se soma à forte presença de palco da cantora, sua voz potente e a musicalidade que trazia um frescor ao mundo indie com elementos de resgate ao punk com uma roupagem moderna e dançante.

No entanto, assim como todo grande movimento cultural, há o começo, o auge e também a decadência. Vimos muitos artistas atingindo números estratosféricos e caindo em declínio. Declínio esse que não necessariamente significava o seu fim, mas apenas que os rumos da música mainstream sopravam para outros lados. A implementação maciça dos serviços de streaming e a força poderosa do marketing digital nas redes sociais, sobretudo de 2010 em diante, deu um jeito de “normalizar” as coisas. Daí o surgimento de bandas com sonoridades mais palatáveis como Imagine Dragons e One Republic. Foi nesse contexto que muitos grupos acabaram, como é o caso do Gossip, que sobreviveu até 2016 reciclando material dos anos de ouro. 

Real Power teve uma longa gestação, mas sofre dos mesmos problemas dos anos finais do trio. É legal de ouvir, mas traz um gosto de reciclagem. É interessante notar que enquanto “Standing in the way of control” surge como um hino que reivindicava a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos, a faixa-título do novo trabalho aparece na esteria dos protestos do Black Lives Matter. O impulso político do grupo é um ponto que aparece mais nas entrelinhas do que propriamente nas composições, embora estejam lá. 

Dessa vez, o LP do trio americano incorpora questões mais pessoais como amores frustrados e perdas. No campo afetivo, Ditto e sua então esposa Kristin Ogata se separam. Além disso, a cantora perdeu o seu pai durante o período de hiato. A banda em si também sofreu alguns dramas pessoais. Beth e o guitarrista Brace Paine acabaram perdendo o contato depois que ele se tornou cristão e foi viver no interior do Arkansas. Já a baterista Hannah Blilie também passou pelo rompimento de uma relação. Foi durante a construção do segundo álbum solo de Ditto que os três se reencontraram e retomaram o Gossip, o que faz de Real Power também uma espécie de divã para o trio de amigos. 

Todas as composições do novo trabalho foram escritas por Beth Ditto e Brace Paine, com exceção de “Tell me something”, que é do produtor Jason Lader. A produção ficou a cargo de Rick Rubin, um dos grandes produtores americanos por trás da popularização do hip-hop. Entre os pontos altos do disco estão a dobradinha que abre o trabalho, “Act of God” e “Real Power”, que trazem o que o Gossip tem de melhor a entregar, com vitalidade sonora. Já os destaques das baladas do álbum ficam com “Turn the card slowly”, “Tell me something” e “Peace and Quiet”, que constroem emoção com a potência vocal de Ditto. 

Real Power é uma reafirmação do legado do Gossip, trazendo uma sonoridade madura que mistura nostalgia e novos elementos. Embora o álbum evite grandes inovações, ele oferece momentos de vigor. A banda, com sua combinação de experiências pessoais e o contexto sociopolítico atual, ainda tem muito a dizer, mas a sensação que fica é de que poderiam ter sido mais ousados. Ainda assim, Real Power é uma escuta sólida para os fãs de longa data e para aqueles que buscam um vislumbre do que o trio pode oferecer em sua fase mais introspectiva.

75/100

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