Crítica | ‘Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes’ é maduro e brutal

Prequel da franquia já aclamada emociona com referências, mas se sustenta muito bem como filme solo.


Sessenta e quatro anos é o tempo que separa a história de Katniss, já conhecida e consagrada, e o princípio da história do temido presidente Snow. Com uma pequena amostra dos Dias Sombrios, ‘Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes‘ chega aos cinemas para contar a origem de um personagem tão emblemático — e como ele se tornou tão odiado por todos.

De um Snow criança, faminto e vivenciando horrores da guerra para um adolescente carismático e sedutor, a pobreza continua um tema recorrente. Embora faça de tudo para esconder sua condição e se dar bem no meio da elite da Capital, seus esforços por melhores condições para si e sua família também não são poupados. É nesse cenário de disputa, segredo e tentativa de destaque que o longa começa a se desenrolar, enquanto Snow (interpretado por Tom Blyth) é visto como um promissor acadêmico, prestes a vencer um prêmio que pode melhorar a vida de todos ao seu redor.

Paris Filmes / reprodução (2023)

Não demora até o filme apresentar uma “mudança” nos planos, que coloca Snow como mentor de um dos tributos para a décima edição dos Jogos Vorazes — que enfrenta também suas crises, mas de audiência. Os Jogos já não convencem como antes e a barbárie apresentada vem enfrentando uma série de críticas e ataques, colocando sua existência em cheque.

Dra. Gaul (interpretada por Viola Davis), no entanto, não pretende perder seu posto de Idealizadora dos Jogos, e coloca Snow em situações que levam o jovem a alavancar o sucesso dos jogos, enquanto o acadêmico se apaixona por Lucy Gray, a colorida e cantante tributo do Distrito 12.

Mais uma vez sob o comando por Francis Lawrence, o longa se apresenta bastante fiel ao livro: com quase três horas de duração, o filme (assim como o trabalho de Suzanne Collins) se divide em três atos, a narrar a apresentação do cenário, personagens e o conflito maior no primeiro ato, a 10ª edição dos jogos no segundo ato e o desenrolar dos acontecimentos na Arena no terceiro. Francis faz um ótimo trabalho na direção, entregando um filme ainda mais maduro e dinâmico que os quatro longas anteriores da franquia.

Bem mais explícito e violento que os anteriores, nesse filme há mais elementos que mostram os horrores dos jogos: mentores vomitando perante a barbárie, mortes mais gráficas e elementos que, embora ajudem a baixar a classificação indicativa, ainda indicam o literal ataque contra a humanidade dos jogos, como na cena em que uma das tributas é arrastada pelos pacificadores até a Arena, enquanto chora totalmente sem forças perante a situação. Outros momentos ajudam a humanizar, aproximar os personagens da realidade e principalmente evidenciar o estado de vulnerabilidade em que os participantes se encontram nos distritos, como a tributa doente que tosse sem parar e demonstra visível fraqueza.

Paris Filmes / reprodução (2023)

A direção de arte também é bem acertada: diferente dos filmes anteriores em que há um “glamour” vivido pelos tributos entre o momento da colheita e os jogos, n’A Cantiga vemos que, sessenta anos, não era bem assim. Os elementos distópicos que também dão uma sensação de uma realidade “diferente” nos outros filmes, são minimizados aqui: o cenário inicial de reconstrução pós-guerra é facilmente relacionável, com elementos de cena como carros, mobília, televisão e outros que se parecem muito com os que tínhamos nos anos 50, período pós Segunda Guerra Mundial. Prédios e aparatos fantasiosos e tecnológicos quase não estão presentes aqui, fazendo com que o espectador se sinta muito mais perto da realidade apresentada, crie conexões e se horrorize com muito mais proximidade do cenário desenrolado.

As atuações são bem satisfatórias, com menção honrosa à brilhante Viola Davis, que apresenta uma vilã cartunesca e excêntrica, aos moldes da Capital, mas cheia de vida, carisma e sinais de humanidade que muitas vezes não são retratadas tão bem. As nuances de sua atuação tornam a personagem não apenas cativante, mas sedutora, borrando as linhas de “bem e mal” e fazendo com que nos simpatizemos com ela, mesmo com tamanhos horrores cometidos e tamanha frieza apresentada perante a vida de outras pessoas. Essa dicotomia intriga o espectador e reafirma a excelência da atriz, que traz para si todos os olhares do cinema em qualquer uma de suas cenas.

Paris Filmes / reprodução (2023)

Rachel Zigler e Peter Dinklage também desempenham bem suas funções, sendo Rachel excelente em suas cenas musicadas e em seus entretons, entregando uma personagem ora adorável, ora misteriosa. Hunter Shafer é uma adição brilhante ao elenco, interpretando a prima do jovem Snow, Tigris, que conhecemos brevemente nos outros filmes como uma personagem bizarramente excêntrica. Nesse filme, despida de todo escândalo, entrega uma menina doce e bondosa, que se encarrega de tentar cuidar e trazer para Snow seu senso de humanidade e gentileza.

Repleto de ação, o longa — por se esforçar em ser fiel ao livro —, derrapa no começo do terceiro ato, enfraquecendo parte do ritmo (até então) constante da narrativa e quase perdendo a atenção do espectador. Mesmo assim, o esforço da adaptação é louvável e, de forma geral, muito bem executado, deixando fãs e leitores da franquia bem satisfeitos com a quantidade de similaridades e referências aos filmes e livros apresentados anteriormente. Essas referências, inclusive, não interferem na experiência de novos espectadores — mas torna o longa um deleite para quem já está imerso nas história da Capital.

Paris Filmes / reprodução (2023)

De forma geral, o filme é bem satisfatório e consistente, se mantendo uma ótima produção mesmo para quem nunca teve contato com as histórias anteriores. O longa também traz uma crítica à espetacularização da violência, ao passo que apresenta bem o surgimento de um vilão que já conhecíamos, trazendo um personagem complexo, bem trabalhado e desenvolvido.

A franquia se mostra não apenas viva como muito promissora, entregando um quinto filme que agrega aos anteriores, diferente de muitos subprodutos desenvolvidos em que é perceptível o esforço em apenas ganhar dinheiro sob um nome mais conhecido. A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes se sustenta mesmo sem Katniss e Jennifer Lawrence, introduzindo novos e também cativantes personagens e mostrando o surgimento de um mundo que é conhecido, sim, por seus horrores, mas que nos seduz e nos deixa ávidos por muito, muito mais.

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