Crítica | Maggie Rogers, “Surrender”

Usando sua voz da forma mais agressiva possível em ‘Surrender’, Maggie Rogers transita entre delicadeza e revolta com naturalidade.

É muito fácil se acomodar na música. De várias formas; não mudar uma sonoridade que está trazendo ganhos, não ir além dos próprios limites que enxerga no gênero que trabalha, não dar um visual inesperado a um projeto novo.

Por mais que hoje as pessoas estejam mais atentas sobre quais artistas gostam de ficar quietinhos e apenas fazer o básico, ainda assim existem aqueles que não sentem vontade alguma em mexer no que está ganhando. Não há problema algum em agir assim, entretanto, perceber quando um artista prefere não trazer o mesmo e tenta evoluir é uma sensação maravilhosa.

Geralmente, um disco tende a deslumbrar o ouvinte de forma unificada, em que cada música é parte de algo maior e onde mesmo que muitas funcionem sozinhas, serem indispensáveis juntas se torna algo indiscutível. Pode parecer muito óbvio analisar dessa forma, mas em um momento onde apenas surfar em onda X para render um bom retorno em streams é o maior foco da indústria, há um trabalho maior em conseguir dar a devida atenção para quem vai na contramão.

Transformar uma seleção de canções com personalidade singular e fazer com que o resultado dessa mixagem seja uma evolução tanto musical quanto profissional é o que Maggie Rogers faz em Surrender.

A data escolhida para esse lançamento foi arriscada, isso porque seria muito fácil ser eclipsado por outros retornos aguardados, e (estrategicamente) isso é parte das pequenas ações que fazem este álbum existir sem medo. A sensação de que estamos ouvindo algo que crava seu lugar de forma valente é notória logo nos primeiros segundos, mas a verdadeira surpresa é perceber que a força para mostrar que veio para ficar se estende até o final do projeto. Esse vigor está presente de forma catártica em seus vinte minutos iniciais, como se fosse um furacão que vai levando tudo que vem pela frente.

É possível adaptar a narrativa como um surto, que cresce de forma tão rápida e intensa que só é possível perceber seu acontecimento quando ele colide da maneira mais feral possível: sem dó, sem pedir licença e sem ao menos dizer de onde veio.

Os momentos de calmaria entrelaçados com agressividade representam uma instabilidade emocional proposital. Se com “Overdrive” e “That’s Where I Am” ele camufla gritos abafados de forma educada, em “Want Wan“‘ a cantora quase se esgoela para deixar o mais claro possível suas intenções. A voz de Maggie é um personagem único nessa trama, e seu contraste com as produções pesadas de Kid Harpoon parecem formar um casal que briga para decidir quem vai dominar a relação.

A voz que era doce, começa a mostrar outras facetas, de onde começam a sair gritos inesperados soltos em momentos de quietude. Enquanto isso, o instrumental acompanha de forma afrontosa e sempre atacando de frente, até provocando quando se coloca em segundo plano, como se esperasse que sua adversária tente superar a percussão pesada ou a guitarra estridente que acabou de apresentar.

Uma das razões que fazem “Shatter” ser um dos melhores momentos é justamente lembrar o ouvinte que não é recomendado se acomodar, porque se o começo trouxe picos de energia logo cedo, isso não significa que a tensão vai seguir um caminho constante. Momentos mais suaves até podem estar esperando logo na próxima faixa, mas não se deve tratar essa esperança de forma absoluta.

‘Anywhere With You’ é capaz de exalar diversas emoções, fazendo com que sentimentos como amor, aconchego, incoerência mental, vulnerabilidade, pânico e perda de equilíbrio se tornem um só. O olho daquele furacão que teve seu inicio após o play no disco está aqui, a falsa sensação de insegurança dura exatamente dois minutos e trinta e sete segundos. Pois é a partir daí que aquele relacionamento agitado entre voz e produção tem seu momento mais caótico e romântico.

A guitarra prepara o terreno para o estouro, e durante a ponte os dois se tornam um só, a cantora grita não querendo perder tempo com qualquer dúvida e de resposta recebe justamente o que precisa: um acompanhamento que a guia para se levar cada vez mais ao limite enquanto questiona ”Are you ready to start?”.

O que faz Surrender ser tão fascinante é transitar entre delicadeza e revolta com naturalidade. É fácil se identificar com os altos e baixos que cada letra narra, e isso foi possível porque Maggie Rogers não se acomodou. A cantora vem de um começo bom, mas que não mostrava tudo que a personalidade da artista parecia oferecer, e essa evolução aconteceu devido ao seu amadurecimento, tanto profissional como pessoal.

O título do álbum é homônimo a tese que defendeu em sua graduação, e seus estudos são uma parte valiosa para que se tornasse a mulher que segue sendo. A percepção sobre ela e a forma como se porta é diferente, entretanto, a mesma que apresentava “Alaska”‘ para produtores renomados ainda existe.

Agora, em vez de um olhar que caminha por todos os cantos evitando contato direto, ela faz questão de erguer a cabeça e observar cada ação de quem a vê, sabendo que será encarada. Só que dessa vez, Maggie encara de volta.

Nota: 86/100

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