Sempre que questionado sobre o seu terceiro álbum de estúdio, Sam Fender deixa claro: People Watching é uma homenagem de nome e sobrenome à mulher que assumiu por muitos anos o papel de “mãe postiça” na história de sua vida, Anne Orwin. Mais do que isso, o disco é uma carta aberta sobre a dor do luto, o desafio do pertencimento e a batalha constante contra a austeridade de um Estado ruído por suas próprias políticas predatórias.
O lead-single já nos introduz a essas temáticas desde o início — sob as lentes de um Fender que busca no outro um escape da apatia dos dias passados dentro do hospital, impotente, enquanto vê alguém que ama adoecer cada vez mais. É ao observar a vida das pessoas pela janela, imaginando a grandeza de cada uma das histórias que atravessa as calçadas, que Sam encontra inspiração para compor. Aqui, o músico mostra a que veio: construindo uma narrativa sóbria e sólida combinada a sonoridade amplificada como pano de fundo, ele equilibra os versos carregados à instrumentalização eufórica, dominando a dualidade pela qual é conhecido e amado. Dualidade essa que acompanha o ouvinte por todo o disco, e brilha de maneira especial em cada uma das faixas.
O Sam Fender de Hypersonic Missiles (2019) e Seventeen Going Under (2021) sempre foi político, é um fato. Em ambos, já cantava sobre a raiva e frustração de uma juventude criada com promessas de um mundo que nunca existiu em primeiro lugar, delatando as injustiças vividas pela classe operária da qual ele e sua família sempre pertenceram. Nesse último lançamento, não foi diferente. Com anos de carreira nas costas e o título de celebridade nos bolsos, o compositor explora essa realidade pelo lado de fora, destrinchando sentimentos de pesar e culpa por entre os versos.
Em canções como “Chin Up”, “Crumbling Empire” e “Wild Long Lie”, temos um ênfase maior no sofrimento enfrentado pela população do norte da Inglaterra, traduzidos, numa abordagem mais pessoal, pelos problemas vividos por entes queridos de Fender; Dores que vão do desemprego à abstinência, como um ciclo vicioso do qual ele não consegue romper, independente do quanto tenta ajudar, e se culpa por ter conseguido escapar. O impacto persistente do governo Thatcher é evidente aqui – as comunidades ainda lidam com os efeitos miseráveis da privatização neoliberal. As letras trazem, de maneira madura e sensível, uma denúncia cortante, intrínseca ao que se conhece do mundo hoje.
Se aprofundando mais no assunto, “Little Bit Closer” aborda a busca por compreensão e conexão nessa realidade fragmentada, contrapondo empatia e dogmatismo religioso. A letra se desenrola como um debate interno, onde ele reflete sobre as contradições das instituições que prometem salvação, mas perpetuam a exclusão. A intensidade emocional da faixa é marcada por versos densos e imagens vívidas, como “They break you in like a wild foal / Target the dole queue broken souls”, um ataque certeiro às estruturas que marginalizam a classe trabalhadora.
“Rein Me In” e “Arm’s Length” por outro lado, são baladas mais introspectivas sobre o íntimo do próprio Fender e suas desilusões amorosas. Ainda que sigam o mesmo ritmo catártico do restante do disco, a primeira ganha o público com sua lírica irônica sobre se deixar afogar nas próprias mágoas, enquanto a segunda conquista com uma pegada mais leve e radiofônica, estilo Fleetwood Mac. É gostoso de ouvir.
O verdadeiro ponto alto de People Watching, no entanto, são as faixas “TV Dinner” e “Remember My Name”, ambas carregadas de uma profundidade lírica inestimável, junto de uma sonoridade expressiva, que rompeu com os padrões da discografia do britânico de forma extraordinária. “TV Dinner” é um dos momentos mais crus do disco, onde Fender entrega uma performance vocal angustiada a lá Jeff Buckley, desenhando um retrato ácido da cultura das celebridades e da desigualdade social. A faixa cresce como uma onda de desespero, com pianos dramáticos e arranjos que intensificam sua carga emocional. Já “Remember My Name” se destaca por sua abordagem mais sutil, fugindo das grandiosas explosões instrumentais que permeiam o álbum, uma homenagem a história de amor de seus avós.
Ao invés disso, Fender opta por um clima etéreo, embalado pelos sopros fantasmagóricos da Easington Colliery Band. Essa escolha dá à música uma qualidade atmosférica única, tornando-a um dos momentos mais singulares e emocionantes do disco. Ambas as faixas mostram um artista que, ao invés de se apoiar apenas em sua já conhecida fórmula de hinos, se permite explorar novas texturas, consolidando People Watching como um projeto ainda melhor que os anteriores.
People Watching é bem expansivo, contando com arranjos orquestrais deliciosos de escutar e faixas mais atmosféricas que não economizam nas cordas, corais e até saxofone. A produção de Markus Dravs (Coldplay, Arcade Fire) e Adam Granduciel (The War on Drugs) eleva as músicas a novas proporções. Já, na composição, Fender mantém seu estilo característico de narrativa observacional, capturando detalhes da vida britânica com honestidade e sensibilidade, apresentando sua capacidade de conectar experiências pessoais a temas sociais mais amplos.
Cumpre fielmente a promessa do seu título, People Watching examina de perto as pessoas, amizades e relações que ajudaram a formar Fender ao longo do tempo. Quanto a Anne, que desde lá atrás inspirou Sam a subir nos palcos que um dia o fariam famoso, poderá encontrar paz em saber que seu menino não só a homenageou em uma de suas obras, mas também o fez com uma excelência admirável que toca todo e qualquer um que parar para escutar.