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Crítica | The Cure, “Songs of a Lost World”

O The Cure finalmente quebrou o silêncio de 16 anos com o lançamento de “Songs of a Lost World”, seu 14º álbum, lançado no último 1º de novembro. Sob a liderança de Robert Smith, a banda mergulha novamente em suas águas profundas e melancólicas, oferecendo oito faixas que somam quase 50 minutos de uma sonoridade familiar, mas ao mesmo tempo inquietante. O disco, disponível nas principais plataformas de streaming, também ganhou edições físicas em vinil, CD e até fita K7.

Com “Songs of a Lost World”, Smith apresenta um “compilado de músicas para um mundo perdido”, tema recorrente em sua obra e que remete aos álbuns Pornography (1982) e “Disintegration” (1989), que exploram tanto sonora quanto conceitualmente a melancolia e a reflexão sobre a decadência do mundo ao seu redor. Mas de que mundo perdido Robert Smith está falando? Embora o cenário político e social tenha mudado bastante desde os anos 1980, há uma correlação entre o espírito da época e o que vemos no presente, refletido no ressurgimento do The Cure não apenas como uma banda que revive seu legado, mas como uma força criativa que continua a refletir o mundo contemporâneo.

O “mundo perdido” evocado por Smith não diz respeito apenas a um passado distante, mas também a um presente que ele observa de forma crítica, marcando a passagem do tempo e os efeitos da idade. A juventude que um dia ele retratou com sua inquietação, agora se transforma em uma reflexão sobre a perda, a morte, a mudança e as coisas que não podem mais ser reconhecidas. Esse processo de envelhecimento e a percepção de um mundo em transição, muitas vezes irreconhecível, são centrais em suas letras. 

As dores e angústias são sobre a frustração com as mudanças da própria vida e o impacto da modernidade sobre a identidade e as memórias pessoais. O romantismo, sempre presente na obra do The Cure, se intensifica nesse álbum, não apenas no sentido clássico de amor e perda, mas também como uma reflexão sobre o próprio “eu” que se desvanece diante do tempo e das transformações irreversíveis do mundo à sua volta.

Esse “mundo perdido” também ecoa as inquietações sociais que marcaram as décadas de 1970 e 1980, quando o punk e o pós-punk se tornaram formas de expressão para uma geração que via o suposto fracasso dos ideais progressistas e o avanço de uma ordem neoliberal, representada pelo governo de Margaret Thatcher no Reino Unido e por Ronald Reagan nos Estados Unidos. O punk, com sua energia crua e crítica social, deu lugar ao pós-punk, onde a juventude se voltou para uma introspecção mais sombria, questionando a existência e as contradições de uma realidade saturada de consumismo e alienação. Essa transição ajudou a abrir caminho para o surgimento de uma nova estética musical, mais oblíqua e experimental, com bandas como The Cure, que, em sua jornada, misturaram a atitude punk com sonoridades mais sofisticadas e uma busca pela beleza na melancolia.

Hoje, o cenário político e social do mundo carrega incertezas da vida que se assemelham às que marcaram a virada dos anos 70 para os anos 80. A tecnologia avançou de forma vertiginosa, mudando completamente as relações interpessoais e impondo uma realidade polarizada. As mudanças climáticas representam uma ameaça iminente para as gerações futuras, e o ressurgimento de movimentos políticos de extrema direita, com flertes fascistas, contribui para a sensação de um “mundo perdido” ainda mais palpável. Nesse contexto, “Songs of a Lost World” não é apenas uma reflexão nostálgica sobre o passado, mas uma meditação sobre a fragilidade da vida e a impermanência de tudo o que se conhece, oferecendo uma sonoridade que, ao mesmo tempo, ressoa com a juventude do passado e com as angústias da maturidade.

Robert Smith, mais do que nunca, reflete sobre as perdas, sobretudo as pessoais. Nas últimas décadas ele asssitiu a morte de boa parte de sua família de perto. O romantismo de suas letras se expande para uma dimensão mais introspectiva, onde o “mundo perdido” não é apenas uma referência a um cenário global, mas ao próprio processo de envelhecer e perder o reconhecimento de algo que um dia se considerou familiar. Em “Songs of a Lost World”, o The Cure não apenas revisita seu legado, mas também acrescenta uma nova camada de complexidade emocional, refletindo um tempo de incertezas, de nostalgia e, ao mesmo tempo, de esperança frágil em meio à desilusão.

Músicas para um mundo perdido

A faixa de abertura de “Songs of a Lost World”, “Alone”, estabelece de imediato o tom do álbum, criando uma atmosfera profundamente emocional e poética, uma fórmula que o The Cure domina com maestria. O trabalho não busca agradar ao mainstream nem seguir as convenções sonoras do momento; não há a preocupação de soar comercial. Tanto que “Alone”, “And Nothing Is Forever” e “Endosng” a banda já vinha tocando há meses em shows, inclusive em sua apresentação no Primavera Sound em São Paulo no ano passado. Com mais de seis minutos de duração, a voz de Robert Smith só entra após uma introdução de três minutos, e a faixa não traz nada que se assemelhe a hits anteriores como “Lovesong” ou “Boys Don’t Cry”

Este álbum revela um mergulho confessional e introspectivo, quase como um exercício psicanalítico de Robert Smith, onde ele expõe a forma como se enxerga no mundo atual. “Alone” fala diretamente sobre “os fantasmas de tudo o que fomos, esperanças e sonhos que se foram, o fim de cada canção”. Em sua melancolia, a música reflete um distanciamento do passado e uma percepção de perda e fim.

A quota de amor romântico no disco está representada em faixas como “And Nothing is Forever” e “A Fragile Thing”, onde pianos delicados e guitarras melancólicas se misturam à voz inconfundível de Smith, um romântico incurável que ainda acredita no “pra sempre”. Ele consegue tocar em fracassos amorosos de forma sublime, tornando cada tristeza quase celestial. Quando a primeira parte do álbum se aproxima do fim, “Warsong” traz uma atmosfera fúnebre, com a poesia política de Smith se manifestando de maneira sutil, característica de seu estilo. Sua voz dramática, como sempre, ganha uma nova dimensão, complementada por linhas de baixo que antecipam a mudança de tom da segunda parte do trabalho.

“Done: Nodrone” é a faixa mais próxima de um single que “Songs of a Lost World” apresenta. Com sintetizadores oitentistas, ela quebra um pouco da melancolia do álbum, oferecendo uma sonoridade mais animada, quase dançante — algo que provavelmente encontrará seu espaço nas pistas góticas ao redor do mundo. Já em “I Can Never Say Goodbye”, Smith se apresenta profundamente marcado pela dor, cantando: “Algo perverso está chegando para roubar a vida do meu irmão”, uma referência comovente ao câncer que vitimou seu irmão, Richard Smith, em 2018.

Em mais um momento de reflexão sobre o passado e as incertezas do futuro, “All I Ever Em” mergulha em um sentimento de ansiedade — um estado de espírito que hoje permeia todas as gerações. Por fim, o álbum se encerra com “Endsong”, uma faixa de mais de dez minutos que encapsula o conceito geral do disco. Nela, Smith cria uma longa e densa atmosfera dark, sustentada por piano e bateria, em que se reflete sobre a finitude, a própria vida e a busca do jovem que, no passado, ainda se via com um senso de pertencimento. A nostalgia invade o espaço da canção, expressando a dificuldade de se reconhecer em um mundo que, por mais que se tente, já não compreende e tampouco se identifica com o “eu” de outrora.

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