O disco Meat Is Murder, clássico do The Smiths, completa 40 anos com um legado que influencia a música alternativa até a atualidade. Lançado em fevereiro de 1985, o álbum consolidou o grupo como um dos grandes nomes do indie e do pós-punk oitentista. Além disso, seu lirismo político é considerado um marco pela capacidade de unir o ativismo radical de Morrissey pelos direitos dos animais com sua habilidade poética de capturar o sofrimento emocional humano.
Lançado pela clássica gravadora independente Rough Trade, o segundo disco de estúdio do quarteto inglês traz na capa o fuzileiro naval americano Michael Wynn, que lutou na Guerra do Vietnã. Em seu capacete, a banda substituiu a frase “Make War Not Love” (Faça Guerra, Não Amor), por “Meat Is Murder” (Carne é assassinato). As capas dos discos dos Smiths costumavam ser uma obra à parte, sempre com fotografias em preto e branco ou sépia de ícones do cinema ou de momentos históricos.
O segundo trabalho do quarteto inglês veio depois da estreia com o álbum homônimo da banda, disco que colocou os Smiths na rota mundial do rock alternativo. Com músicas como “This Charming Man” e “Hand in Glove”, o debute do grupo sela a bem sucedida união das composições e vocais de Morrissey com as guitarras e produção musical acurada de Johnny Marr. Depois disso, o grupo lançou outros dois álbuns muito bem sucedidos, The Queen is Dead (1985) e Strangeways, Here We Come (1987), e a banda acabou, principalmente pelas desavenças entre Morrissey e Johnny Marr.
O início dos anos 80 é um período marcado pela ebulição de bandas britânicas com nomes como The Cure, New Order, Siouxsie and The Banshes, Depeche Mode, Bauhaus, entre outras. O surgimento de novos grupos e movimentos musicais dentro do rock acontece em forma de contraponto: o novo tenta negar o antigo. Se o punk dos anos 70 negava a apatia política do hard rock e do rock progressivo que faziam sucesso no mainstream, o pós punk marca uma ruptura com a música excessivamente de protesto e se volta para o interior. Os temas políticos não somem completamente, mas o amor, a tristeza, a psiquê humana e temas mais soturnos reaparecem com mais força.
Como o The Smiths surge nessa onda, automaticamente foi categorizado dentro do pós-punk, mesmo sem se encaixar de fato. A banda de Morrissey e Marr é um misto do que sobrou do punk com o que começou depois. Eles eram políticos e sensíveis ao mesmo tempo. Parte dos artistas da cena não via alternativas para uma juventude que vivia o auge do neoliberalismo dos dois lados do Pacífico senão a poesia e o individualismo. Os Smiths, no entanto, queriam “a rainha morta” e ao mesmo tempo eram extremamente dramáticos ao falar de amor, por exemplo. Essa dualidade, esse malabarismo retórico entre a crueza e a suavidade foi o que tornou o grupo único.
Há quem diga que o grupo envelheceu mal por conta das polêmicas de Morrissey nos últimos anos. Os anais da história, supostamente, apontam alinhamento do artista com o que tem se consolidado com a extrema direita contemporânea. Ele foi defensor do Brexit, por exemplo, que marcou a saída do Reino Unido da União Europeia. Ele, por vezes, teceu comentários infelizes sobre imigrantes, faz críticas ao “politicamente correto” e, entre outros temas, faz comentários considerados racistas.
No entanto, sua banda durou menos de uma década (1982-87) e traz uma perspectiva bem diferente do que Morrissey vem apresentando. Confundir The Smiths com a carreira solo de Morrissey pode ser um equívoco, visto que há de fato uma diferença ideológica ao observar as letras da banda e tudo o que Morrissey vem se tornando ao longo dos anos. Sua carreira solo, inclusive, é uma espécie de resquício do sucesso dos Smiths. Como se a banda tivesse envelhecido como vinho, mas seu frontman como leite.
O quarteto tem letras que refletem valores progressistas ao fazer críticas sociais contra a monarquia (“The Queen is Dead”) e à alienação social pela mídia (“Panic”), por exemplo. É como se o conteúdo lírico do grupo inglês estivesse contradizendo o próprio Morrissey. A análise anacrônica, nesse sentido, é uma maneira discursiva para mostrar que é possível separar a arte de seu criador, em alguns casos.
Meat Is Murder
No início de 1985, The Smiths lançam seu segundo álbum, Meat Is Murder, uma obra mais ousada, estridente e politicamente carregada do que o debut The Smiths (1984). A banda já se destacava pelo seu som único, mas a partir daqui ficaram mais claras as intenções de botar na mesa questões sociais como o veganismo.
O título em si é um manifesto que evoca o ativismo vegetariano e revela uma faceta de Morrissey que sempre foi imersa em temas polêmicos e desafiadores. A faixa-título, “Meat Is Murder”, em particular, se tornou um hino para muitos ativistas e, ao mesmo tempo, um ponto de controvérsia devido ao rigor de Morrissey, com uma postura radical aos princípios que defendia.
Musicalmente, Meat Is Murder marca um ponto de maturação e expansão para o quarteto. Se no álbum anterior as guitarras de Johnny Marr já haviam conquistado a crítica com suas melodias cristalinas e arranjos inovadores, aqui elas tomam um rumo mais arriscado. Em “Rusholme Ruffians”, os riffs de rockabilly que Marr insere ao longo da canção adicionam um frescor, enquanto em “Barbarism Begins at Home”, o baixo funk de Andy Rourke se destaca, conferindo à faixa uma camada de complexidade que marca um passo significativo na evolução sonora da banda.
No que diz respeito às letras, Morrissey se mantém como o provocador de sempre, mas agora com um olhar mais amplo para as questões sociais. Faixas como “Nowhere Fast” atacam a monarquia britânica, com uma crítica às figuras de autoridade, enquanto “The Headmaster Ritual” e “Barbarism Begins at Home” exploram as feridas da educação tradicional britânica, com suas práticas crueis de disciplina e castigo físico. Morrissey não poupa nem mesmo as instituições religiosas, e sua visão de uma sociedade opressiva e desigual transparece em cada verso.
“How Soon Is Now?”, que foi lançada como B-side antes de se tornar um dos maiores clássicos da banda, apesar de não integrar a versão original do álbum, foi adicionada aos relançamentos subsequentes. A canção, com seu clima melancólico e aclamado riff de guitarra, representa a perfeição de Marr, e se transformaria em um dos maiores legados do grupo. Seu estilo introspectivo e quase angustiante se encaixa como uma luva no contexto do disco, mas é também um vislumbre do que os Smiths ainda tinham a oferecer nos anos seguintes.
Em termos de impacto, Meat Is Murder foi um sucesso tanto comercial quanto crítico, alcançando o número um nas paradas do Reino Unido, algo que, embora tenha sido um marco para a banda, também foi um reflexo de como o público estava começando a entender o peso das mensagens contidas nas músicas do grupo.
Meat Is Murder não é apenas um álbum sobre política e ativismo, é uma obra de transição e amadurecimento para The Smiths, que souberam combinar protesto e melodia com uma sofisticação ímpar. A banda não apenas se arriscou musicalmente, mas também se posicionou de maneira clara, criando um álbum que se mantém atual até hoje, tanto pela relevância de suas mensagens quanto pela atemporalidade de sua música. Toda e qualquer banda de rock alternativo, desde então, beberam de certa forma da fonte desse trabalho, o que confirma seu legado de influência.