Anos 80 em Brusque, Santa Catarina. Nascia o movimento BQ80 — um dos expoentes e “filhos” da produção cultural influenciada pela onda punk do Brasil. Lá, uma forte cena local movida pelo desejo coletivo de não apenas viver o que bandas internacionais e também de outras regiões do país vinham trabalhando, mas fazer daí sua própria identidade, surgiu uma manifestação que ganhou forma com nomes como Bandeira Nacional, Dabesta e Devotos de NSA.
Agora, mais de 40 anos desse marco, a BQ80 é orgulhosamente mencionada como referência direta da Torvelim, banda sul-catarinense que acabou de lançar seu primeiro disco — Do meio Para Baixo. E, se à época, essa onda se propôs a ser um corpo autêntico e com ares de faça você mesmo, à sombra do mainstream, não é surpresa sentir os ecos disso quando seu tataraneto propõe, como na faixa que leva o mesmo nome do conjunto:
Não quero ser como vocês dois / Nem quero fazer mais uma nova mpb / E não adianta de nada, uma letra tão profunda que não diz nada (Torvelim)
O trabalho em si é curtinho, quase meia hora entre inéditas e faixas que já tinham saído antes. Aliás, o bom aproveitamento do tempo (e, não deixa de ser divertido que, curiosamente, seu último suspiro está na desacelerada “Desculpe a Correria”) se destaca. Se, aos ouvidos mais desavisados, a série inicial e sem freios Canto Torto/A Última Ilusão/A Vista do Meio Para vem para colocar em estado de alerta, tudo vai se encaixando ao longo da audição e encontrando outros ritmos como na legião-urbanesca O Que Ficou Para Trás.
Fazendo jus ao lado mais post-punk, é o gostinho amargo que agradaria sem esforço aos fãs do Smiths e Joy Division, transitando entre temas pessimistas e questões para lá de pessoais que uma parte do disco se leva, e, além do quê de The Smashing Pumpkins em faixas como Quem Me Dera Não Sentir.
Sem muitos rodeios pelo direito de reclamar e falar das próprias vontades, o grupo sustenta as próprias intenções e consegue transmitir isso nas letras. Tracks como a excelente A Última Ilusão e Torvelim carregam o lado mais pertinentemente questionador do cenário musical atual, sem poupar ora público, ora artista. O posicionamento, aqui, é mais distante de fórmulas de sucesso e, até onde é possível, mais perto da “arte de guerrilha” e da autenticidade crua.
Corre à boca miúda sobre como o rock comercial que um dia dominou os charts é um corpo num eterno velório. Para a parcela de público que se alimenta de nostalgia e elege como pináculos da qualidade musical números e nomes que hoje já não entregam nem 1% disso, talvez seja verdade.
É fora dessa curva que se encontram nomes como a Torvelim e, por tabela, em quem eles apontam como influências, como os rockeiros irlandeses do Fontaines DC ou Phoebe Bridgers (!) em seus momentos mais ousados, indo a encontro de um público interessado no principal: ouvir música, depois pensar em nomes, rótulos e marcas (nenhum especialista das bandas gringas do passado vai querer sair se chamando de ouvinte de post-punk falador, e ainda bem!)
Comprando o ingresso que custa mais / Com o que dizem fingir desinteressado / Nas festinhas sempre fuma demais / Especialista das bandas gringas do passado (A Última Ilusão)
A expansão criativa de Torvelim está na identidade forte: um dia, uma banda em Brusque, Santa Catarina, foi algo para hoje eles pudessem ser quem são hoje. Conexão que, em tempos de proximidade digital com todos os artistas, movimentos e possíveis referências do mundo ao alcance da mão, lembra sobre o porquê de se virar para o quintal de casa, para o palco de jovens cheios de expectativas em busca de falar e criar com base na própria realidade. Está também nas composições que apostam muito mais nas palavras honestas, no tédio sincero e na manifestação abstrata da melancolia do que em composições polidas e, portanto, podadas. O caminho de Torvelim é promissor.