Crítica | Taylor Swift, “folklore”

Taylor Swift retorna de surpresa e prova com ‘folklore’ que sua sagacidade sobre seu próprio trabalho está cada vez mais perspicaz.

Se qualquer pessoa tivesse que dizer o que é necessário para que uma história de amor fosse contada, a resposta provavelmente seria: um amante. Uma pessoa que se apaixona e têm sua vida mudada a partir de uma paixão. Além disso, a ideia de pensar como almas se cruzam e personalidades se adaptam é uma curiosidade natural, mesmo que em muitos momentos as entrelinhas sejam ignoradas. Fora que, o importante sempre será o núcleo, se o amor não existe simplesmente não é uma história sobre ele. E a perspectiva de quem ama serve como ponto de início, por que é de lá que podemos entender como tudo nasceu e pode morrer. Mas quem dita a ligação entre este sentimento e quem o sente é o escritor. Aquele responsável em narrar comportamentos e atitudes, direcionando quem acompanha a entender sobre as sensações de quem está amando.  

Falar sobre relacionamento vividos é a melhor referência que alguém pode ter, qual a melhor maneira de citar uma situação senão falando sobre sua própria vivência? Mas quando contamos sobre uma realidade, não existe forma de desvirtuar o acontecido, independente do quanto colocamos de honestidade a certeza sempre vai estar lá… Isso aconteceu, aquilo não. Essa limitação natural para contar algo do tipo pode incomodar alguém que já está tão acostumado a falar sobre o assunto. Não é mais um problema citar uma decepção amorosa ou entender que um romance apenas não deu certo. Então o que é um desafio? Nesse caso, nada é mais aterrorizante do que a dúvida partida de um ‘e se?’. ‘Eu amei dessa forma, mas e se tivesse amado de outra?’. ‘Ela decidiu não voltar atrás, mas e se tivesse optado por uma última tentativa?’. ‘Ele apareceu e seus olhares se cruzaram novamente, mas e se ele nunca tivesse estado lá naquele momento?’.

Taylor Swift / folklore por Beth Garrabrant

Escolher imaginar um ou dois caminhos diferentes entre incontáveis realidades alternativas pode ser uma armadilha – até que ponto é necessário mergulhar em algo que não existe? Até que momento é possível imaginar um vazio que só poderia ser preenchido com decisões que não dependem apenas de quem as narra? Decidir encarar este abismo mental é também estar vulnerável a deixar que o próprio pensamento saia do controle e passe a encarar a vida real.

Depois de colocar tanto de si em seus trabalhos e focar em mostrar seu papel daquela que ama, Taylor Swift retorna para dar novas visões sobre suas e outras histórias. O enaltecer do sentimento persiste, mas as composições atingem uma serenidade antes nunca tão bem explorada. Em clima um pouco soturno e por muitas vezes reflexivo, é hora de partir de pequenas concepções e transformá-las em narrações colossais. Para quem achava que após sete álbuns sua capacidade de apaixonar ouvintes estava a beira de um precipício, em ‘folklore’ temos a surpresa de que sua sagacidade sobre seu público e próprio trabalho está cada vez mais perspicaz. 

Partir de pequenas concepções e transformá-las em narrações colossais é um dos maiores acertos do ‘folklore’.

Que Taylor Swift cresceu desejando uma vida de conto de fadas isso não é novidade, desde seus primórdios musicais suplicando que sua imagem viesse à cabeça a partir da lembrança de outro cantor até se sentir como Julieta no conto mais famoso de William Shakespeare. Era notável o quanto o sonho de um amor perfeito e aceitação unânime de sua persona era uma prioridade em sua vida, e demorou muito tempo até que ela entendesse que isso seria impossível de acontecer. Foi após o lançamento de ‘Safe & Sound’ em 2011 que um grande desejo foi despertado nos fãs, a vontade de um álbum menos pop, e menos country também… algo mais próximo do folk. Nove anos depois temos a maior e melhor certeza sobre qualquer previsão feita sobre a artista, de que esse estilo cai muito bem nela. Ao mesmo tempo em que também temos o entendimento de que a garota de anos atrás não seria capaz de fazer o que a mulher de agora fez.

E a forma de abordagem agora é diferente, não temos mais palavras ditas a partir de um ego ferido ou tomadas de pretensões. Quando ela fala ‘But it would’ve been fun – If you would’ve been the one’ em ‘the 1’, não soa amarga e sim compreensiva. O verdadeiro objetivo é entender sobre o que ela quer dizer, porque é partir desta faixa de abertura que já podemos começar a perceber sobre o quanto a maturidade foi um fator imprescindível na criação do disco. A função de contadora de histórias começa realmente em ‘cardigan’, apesar de ser possível fazer analogias com a vida da intérprete (como em uma das frases que mais pode definir sua carreira com ‘When you are young, they assume you know nothing’).

O que surpreende é a intérprete deixar de ser o centro das atenções. Em ‘reputation’ sua reputação era o foco, ‘Lover’ só deu luz as canções de amor devido a seu relacionamento com o namorado, para ‘folklore’ a peça mais importante não é Taylor Swift, e sim as histórias que ela conta. Para uma compositora que sempre usou a si mesma como musa de suas canções de uma forma que beirava o exagero de autocentrismo, é reconfortante ter uma prova cabal de que agora ela sabe se tornar coadjuvante das próprias criações.

Os resquícios da menina que vivia a imaginar grandes relacionamentos como algo mágico ressurge em ‘the last great american dynasty’, a forma de homenagem a figura pública Rebekah Harkness pode ser considerada uma versão madura de ‘Love Story’, mas não por contar uma história mais atual, e sim por falar de forma crua sobre os fardos que uma mulher mirada e admirada pela sociedade viveu sem precisar traçar paralelos óbvios com a vida da cantora.  

A única participação de outro artista em ‘folklore’ está no dueto com Bon Iver. A novata soa como uma filha de ‘The Story of Us’ e ‘The Last Time’, uma pela semelhança no tema, e outra pelo arranjo focado em piano com participação de uma voz masculina. Aprofundando na analogia familiar é como se fosse a criança que cresceu e conseguiu ser tudo que os pais não foram, mas que sempre desejavam ser. O que define ‘exile’ como a melhor faixa e maior representação do disco é tocar em velhos temas sem parecer repetitivo. A maneira que a composição dita uma situação em que não existe narrador confiável ou pessoa correta é um reflexo da maioria dos relacionamentos conturbados, sejam eles finalizados ou não. Se Iver se mostra ressentido sobre a velocidade que alguém seguiu em frente e nos faz tomar seu lado, o ouvinte logo retorna a um ponto de dúvida quando ouve Swift cantar que deu todos os sinais possíveis e nunca foi ouvida. 

Apenas esses dois pontos de vista são o bastante para uma identificação. Quem nunca se viu no lugar da pessoa que acha que na sua cabeça tudo está claro mesmo quando alguém insiste que não está, e vice-versa? O maior drama é justamente apontar a culpa da causalidade. Mesmo que a causa seja algo invisível aos olhos de um, isso não significa que o efeito não pode repercutir com tanta potência.

Quando deixa de falar sobre seus amores, a cantora faz com que a desinformação proposital se torne uma arma tola para aqueles que teimam em dizer que só haviam músicas sobre seus namoros.

Um dos maiores avanços do álbum é trazer letras que podem se adequar a vários momentos pessoais e profissionais. ‘my tears ricochet’ foi de onde partiu o ponta-pé inicial para o trabalho, sendo essa a primeira e única composição solo. Impossível não remeter a lembrança de ‘Speak Now’, único projeto escrito totalmente pela cantora até hoje… Aqui a música não serve para re-provar isso, e sim para determinar um ponto de partida e referência. Em ‘mirrorball’ a estrutura soa confusa a princípio, versões soam como refrões e refrões soam desconexos, mas a analogia que trata sobre ser uma bola de espelhos é o bastante para aproveitar um dos melhores instrumentais, que poderia ser facilmente usado por Sufjan Stevens. Aquela que sempre teve tanto foco quando cantava sobre seus relacionamentos amorosos, deixa ‘seven’ como algo que funciona como a lembrança da vida de criança. E esse toque de nostalgia sempre esteve presente em sua carreira, mesmo que em 2020 a desinformação proposital se torne uma arma tola para aqueles que teimam em dizer que a artista só sabia escrever sobre seus namoros.

Se tem uma coisa que é tão esperada quanto as novas músicas a cada lançamento, são os famosos ‘easters eggs’ que sempre foram tão importantes. Dessa vez acontecendo de maneira diferente, em vez de deixar que encontrem palavras soltas, ela agora define que histórias sejam montadas como um quebra-cabeça. Auto-referenciando outras letras em ‘august’, Swift dá um passo para trás no que diz respeito a guiar suas escritas de amor, e essa é uma das melhores mudanças que ela faz, conseguindo ainda deixar a estrutura soar exatamente como algo seu. Prova disso é um momento chave que se assemelha a duas favoritas dos fãs, ‘Getaway Car’ e ‘Cruel Summer’.

Uma das maiores críticas sobre o seu comportamento sempre foi sobre qual posição ela tende a se colocar em suas letras. Quem estava errado na maioria das vezes não era ela, o que levantava a dúvida de se o dito é realmente a verdade absoluta ou apenas a verdade na cabeça de quem canta. Apesar de já ter falado de forma tímida sobre coisas que fez de errado em outros momentos, ainda era raro ouvir algo que realmente soasse como a Taylor com defeitos e envergonhada. Em ‘this is me trying’ ela abdica de possíveis julgamentos e não se coloca em um pedestal de perfeição, o que vai na exata direção de uma das mensagens passadas. Ela se mostra disposta a ser apontada e julgada assim como tantos outros foram durante composições de sua vida.

‘illicit affairs’ é outro ponto que demonstra uma visão diferente da artista, isso nos dias de hoje em comparação a quem ela era quando tinha vinte e poucos anos. A forma suave em que ouvimos a história de infidelidade não é feita para amenizar o acontecido, e sim para dizer que isso ocorre e como reverbera em todas as partes. Entre prestar atenção em pequenos detalhes para que tudo saia como planejado até perceber o quanto isso transforma alguém, é na frase ‘You taught me a secret language I can’t speak with anyone else’ que se entende a culpa carregada… e a melodia ajuda na entonação, que narra tristeza e não raiva.

A maior ligação com o último trabalho está em ‘invisible strings’. A canção é (mais) uma declaração de amor para Joe Alwyn, e mesmo sem tocar diretamente no assunto é perceptível a inspiração na lenda oriental sobre o ‘fio vermelho do destino’. Uma teoria que pode até surpreender em não ter sido utilizada antes, já que ser uma romântica incurável é algo que sempre esteve claro para quem a acompanha. Fazer analogias com cores é algo recorrente na sua discografia, e é fácil definir essa como a mais romântica representação no projeto.

Analogias nas entrelinhas são um dos segredos para reafirmar que não aceita ser tratada de forma diferente apenas por ser mulher.

Desde a primeira grande resposta a mídia com ‘Mean’ e outra tão pessoal quanto em ‘The Man’, Taylor Swift percebeu que não adianta o que faça, por ser mulher sempre terá que lidar com o famoso ‘dois pesos e duas medidas’ se comparado seu valor e conquistas profissionais com os de um homem. Essa analogia não existe diretamente aqui, mas a letra de ‘mad woman’ é certeira em contar como uma mulher pode ser julgada e tida como louca apenas por se enfurecer, quando na verdade bastaria tentar entender a razão dessa fúria. Um caso antigo (agora já resolvido) pode ser a disputa que envolvia contra o Spotify a respeito do quanto deveria ser paga. A cantora foi criticada e chamada de gananciosa pelo grande público, enquanto artistas menores e compositores (aqueles realmente afetados) tomaram seu lado e a agradeceram. Se a mesma raiva pelo devido valor da sua arte fosse expressada por um homem, as pessoas teriam a mesma opinião ácida? 

Em ‘epiphany’ fica claro o ponto de partida sobre soldados em guerras, mas surpreende quando um twist contemporâneo surge na letra, que passa a focar em profissionais de saúde. Tal qual ‘Soon You’ll Get Better’ temos um momento de música em forma de agradecimento. Se na citada a mensagem era direto para a sua mãe, aqui é maximizada em algo mundial. Ela canta para todos que lidam com qualquer tipo de stress relacionado ao simples fato de lutar ou cuidar de alguém. É exatamente como se entendesse que a realidade dessas pessoas pode ser tão brutal que a simples citação de algo pode ser chocante por si só.

O final do conto que será uma das maiores discussões nos grupos de ouvintes é em ‘betty’. A trilogia musical que começou em ‘cardigan’ e passou por ‘august’ termina justamente com um dos melhores momentos no álbum. Músicas com pontos de vistas masculinos não são algo novo para Swift, mas a exploração da relação que não tem medo de expor o rapaz como o culpado da história é magnífica. Além de ser também o momento que mais tem um pé no country (por culpa de uma gaita viciante e muito bem aplicada). O triângulo entre Betty, Inez e James faz mais sentido quando suas ligações são percebidas de forma natural nas letras, mas entender essa história não é necessário para gostar das três, isso em razão de funcionarem muito bem separadas.

Uma das melhores coisas que vieram com a idade para a cantora foi a facilidade de perceber que ela não é qualquer uma, e nunca deixará de ser. A escolha da vida pública é um fator que pode derrubar uma celebridade facilmente, principalmente uma mulher que sempre teve seus relacionamentos tão públicos, tanto por parte da mídia quanto por decisão própria. ‘peace’ é um lembrete geral, mas que cantada diretamente para quem está com ela. Entre afirmações de que nada será fácil e que nunca será possível dar paz, ela pede de uma forma torta e um pouco confusa para que aquilo persista, pois o que se tem é o que ela é.

Assim como na anterior, ‘hoax’ soa como uma canção de ninar em sua produção, ou algo como uma versão mais tímida de alguma de Agnes Obel. E mesmo que a interpretação maior desta vá para o lado de um romance conturbado e até tóxico, vir logo após uma faixa que é como um pedido de desculpas não faz essa ter um gosto tão agridoce assim. As duas parecem andar juntas como se existissem apenas em função uma da outra (uma boa sacada aqui seria ter usado o conceito de hidden track).

Não seria a mesma coisa contar histórias de uma maneira nova utilizando apenas auxílios do passado, então a decisão de trabalhar majoritariamente com Aaron Dessner (da banda The National) é a melhor surpresa que o disco pode oferecer. As produções minimalistas não são mais músicas radiofônicas e pop, o teor alternativo e folk devido ao clima de melodias quase sombrias dão o toque perfeito para a melancolia das composições. Ainda assim existe um apoio do grande parceiro Jack Antonoff, que acerta em dar mais espaço assinando menos da metade do álbum.

A escolha pela capa minimalista em escala de cinza condiz exatamente com a maior sensação que a cor propõe, neutralidade. Até a decisão (como na capa utilizada como ‘oficial’) de aparecer tão pequena e escondida entre as árvores já é um spoiler do que teríamos durante as dezesseis faixas. Uma Taylor nunca em destaque, mas sempre ali, como que apenas observando e escondida nas canções que ela mesmo desenvolveu. Fazer isso para uma artista que sempre se colocou em primeiro, segundo e até terceiro lugar sobre tudo que é seu, é um grande passo. Essa necessidade pessoal de controle sobre tudo sempre foi aumentando a cada lançamento, até ela perceber que suas criações não precisavam mais estar amarradas com tanta força, afrouxar as cordas pode parecer uma decisão muito difícil para alguém que imprime tanta vulnerabilidade e sinceridade nas palavras, mas a partir do momento que isso se torna público não faz mais sentido não dividir os nós com quem se identifica.

A imagem de Taylor Swift já passou por vários cansaços e saturações, e mesmo assim sua persistência em sempre tentar prover um bom trabalho falou mais alto. Se no passado isso se dava pela obsessão em ter uma boa aceitação, agora ela finalmente compreende que pode fazer isso por outros motivos mais saudáveis. A maturidade pode ter chegado devido aos trinta anos, e o relacionamento estável é uma inspiração que fez bem. Taylor apaixonada e feliz não precisa mais escrever canções sobre um relacionamento triste, por que isso não acontece mais na sua vida. Mas essa porta fechada serve para abrir outra, que significa explorar além de si mesma. Seu dom nunca foi escrever tão bem sobre suas histórias, e sim a maneira como ela as conta, independente de quem for o protagonista da composição.

Partir de inspirações de situações metafóricas, explorar possibilidades que nunca aconteceram e tornar momentos tão rápidos em grandes reflexões são os grandes triunfos do projeto. ‘folklore’ consegue segurar a duração de mais de uma hora sem soar arrastado graças a narrativa envolvente, fazendo com que este seja o melhor álbum da carreira da cantora. Por que ao contrário dos outros, onde ela estava tão focada em criar pequenas faíscas para cada vez que contava um conto, aqui cada momento é naturalmente um fogo de artifício.

Nota do autor:
95/100

Ouça “folklore” da Taylor Swift:
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