“Vi minha vida representada nas características da jaqueira. Ela é misteriosa, precisa de espaço para crescer e, quando cresce, não tem obstáculo que a atrapalhe”, É assim que o cantor e compositor Hiran começa a explicar o título de seu novo álbum, “Jaqueira”, lançado no último mês de maio.
É pouco provável que você não conheça a árvore em questão, e não tenha entendido bem o paralelo. Porém, ainda que este seja o caso, os conhecimentos sobre botânica são dispensáveis quando a tarefa é experimentar este trabalho. Para o artista, o assunto aqui é “a vida, a existência, a natureza e a ligação com o mais genuíno e interno que temos com nós mesmos”. “É sobre a possibilidade de se plantar de novo e florescer em terrenos férteis distintos.”
A trajetória até “Jaqueira”
Desde seu primeiro álbum, “Tem Mana no Rap” (2018), Hiran viu sua carreira decolar e transformar a vida que ele conhecia. Em 2019, o artista passou a ser empresariado por Paula Lavigne, e migrou de Alagoinhas, no agreste baiano, para Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro.
Nessa jornada, ele agregou bastante bagagem: chamou a atenção de Caetano Veloso, Russo Passapusso e BNegão, que já foram apontados como seus patronos pela mídia. Gravou com grandes nomes da música nacional, como Glória Groove, Baco Exu do Blues, ÀTTØØXÁ e Carlinhos Brown. Fez turnês, aparições na Rede Globo, gravou singles e um segundo disco (“Galinheiro”, 2020). Dirigiu e concebeu um EP visual (“História”, 2021), que contou com a participação de Margareth Menezes e Linn da Quebrada.
E esse é só o começo da história.
Ao longo dessa jornada, Hiran se manteve fiel aos seus processos. Em seus discos, contexto em que tem tempo e ambiente para experimentar e elaborar suas ideias, ele aborda as dimensões de suas vivências, em um constante processo de se entender e descobrir seu(s) estilo(s).
Em “Tem Mana no Rap”, a composição é voltada para questões identitárias que orbitam a experiência de ser gay, negro e nordestino na cena rap. À época do lançamento, em entrevista, Hiran declarou a intenção de reafirmar a sua presença. De acordo com ele, “ainda existe muito essa heteronormatividade no rap, do preto forte, gritando, másculo. Essa guerra de pau dos caras do hip-hop é gigante e eles ainda têm uma visibilidade maior, mesmo tendo várias bichas fazendo música boa. Os caras ocupam tudo, mas estamos encontrando nossas formas de existir”.
Por sua vez, em “Galinheiro”, Hiran nos apresentou uma outra faceta, igualmente ousada, mas mais experimental. Neste segundo momento, o compositor explorou as sonoridades do pop, funk, MPB e samba, e seguiu narrativas que ele classifica como de “amor em meio ao caos” político e social pós-2018.
Com “Jaqueira”, Hiran inaugura nova fase
Agora, o rapper dá início a um novo momento criativo. Da reflexão sobre a frase “eu sou uma jaqueira”, dita por um amigo, surgiu a inspiração para canções menos combativas e mais leves e esperançosas. Elaborado no contexto da pandemia, o disco nasce das incertezas do momento, da maturidade forjada pelos anos de carreira, do retorno a Alagoinhas e das relações com sua família e amigos. Hiran reflete sobre essa mudança de perspectiva: “Fiquei tão acostumado a falar sobre os problemas de uma forma agressiva e imponente, que estar neste lugar de vulnerabilidade e de sutileza é uma dádiva que consegui, finalmente, me conceder”.
Como é costume em sua carreira, o cantor contou com participações especiais para explorar todo o potencial de cada faixa. Ivete Sangalo, Melly e Colibri elevam as composições ao dialogarem com ele sobre a vida, a existência e a ancestralidade. Nas melodias, lembranças de casa: sonoridades mais gentis e meditativas, mas não menos complexas, harmonias delicadas e a presença do berimbau.
Para desvendar este trabalho, Hiran conversou com o Escutai sobre processo criativo, pesquisa musical e visão sobre seu presente e futuro.
A pesquisa musical e processo criativo de Hiran
[Ana] Hiran, a sua localização geográfica parece ter um papel simbólico na sua jornada, e interfere diretamente no seu processo criativo. Por isso, primeiramente, gostaria de saber: onde você está morando agora, e o que isso representa na sua trajetória? Onde o álbum “Jaqueira” foi concebido e produzido? [Hiran] Eu tô morando em Salvador, mas eu tenho ficado mais perto de Alagoinhas, o meu interior. Sei que agora que o disco saiu vou ter uma agenda que vai me fazer andar mais por outros lugares do Brasil e do mundo, mas eu precisava muito ter vivido isso nos últimos tempos, desse jeitinho, perto dos meus pais, dos meus irmãos e amigos de infância. Esse disco só existe porque eu estive em casa esse tempo. [Ana] Em seus trabalhos, no âmbito musical, você vai além do rap e do hip hop e explora diversos elementos de outros gêneros, não apenas na melodia mas também na sua interpretação. Você inclusive teve uma banda de rock, a “O Nó”. Como é o seu processo de pesquisa musical? Quais foram suas principais referências musicais para este álbum? [Hiran] Sempre escutei muito folk e country norte-americano, mas, nos últimos anos, tenho gostado muito de sertanejo e de músicas românticas. Juntando isso com as influências sertanejas locais que eu tenho do agreste baiano, em Alagoinhas, veio a salada de fruta pra esse disco nascer. [Ana] Além de cantor, você é um comunicador (inclusive formado em Publicidade) que se utiliza de diversos elementos estéticos e audiovisuais para compor e transmitir a sua narrativa – e participa ativamente da concepção de todos eles. Como é o processo de criação dos outros elementos da sua obra, que vão além das canções em si? [Hiran] Tudo é muito natural. Sinto que eu uso tudo que eu aprendi de uma forma corriqueira, não muito metódica e esmiuçada. Nesse disco, no entanto, eu sinto que eu pensei primeiro (e bem mais) na música, na obra.Uma mudança de perspectiva em “Jaqueira”
[Ana] É evidente a diferença nas temáticas abordadas nos seus três discos. Como você enxerga sua trajetória narrativa desde Tem Mana No Rap até aqui? [Hiran] Cada disco reflete, literalmente, como eu estava me sentindo quando eu os fiz. Escrevi praticamente todas as músicas e eu só consigo escrever de um lugar de vivência baseado no que eu já senti. Cada um representa musicalmente e imageticamente exatamente a vibe que eu estava vivendo quando eu comecei a compor. [Ana] As letras e a melodia de “Jaqueira” mostram uma faceta diferente do Hiran. É um trabalho mais reflexivo, com menos elementos eletrônicos e sintéticos e mais sonoridades que remetem à natureza, ao natural, à ideia de origem, de procedência, ancestralidade, retorno. Você também vê este trabalho dessa forma? Qual o conceito desse novo álbum? [Hiran] O conceito tá muito ligado ao amor puro pela arte, pautado nela mesma naturalmente. Eu me esquivei das questões pós-produção até que tivesse chegado a hora de não poder mais esquivar. Eu não queria que as consequências que o disco pudesse me trazer fossem um foco de objetivo de forma que me prendesse nisso. O disco é sobre a vida, a existência, a natureza e sobre a ligação com o mais genuíno e interno que temos com nós mesmos. É sobre renascer e se plantar de novo pra dar nossos frutos. [Ana] Você já disse que tem mais facilidade de compor quando está inquieto ou não está se sentindo muito bem, mas muitas das letras deste disco me passam a impressão de acolhimento, esperança, autoaceitação. Para exemplificar, penso na faixa “Eu Não Queria Ir Embora”, que é muito emocionante e soa, para mim, como uma mensagem afetuosa e compreensiva. Como foi o processo criativo desse álbum, em qual “lugar mental” você se encontrava ao longo de sua concepção? Você poderia falar um pouco mais sobre “Eu Não Queria Ir Embora”, especificamente? [Hiran] Eu fiz essas faixas na pandemia, eu não tava muito bem. A questão é que, dessa vez, denunciar algo ou apontar quais os problemas ou simplesmente fugir deles não pareciam soluções ágeis e úteis para acalmar o furacão que tava na minha cabeça. Decidi escrever esses mantras, como forma de trazer esperança e mergulhar neles, como se eu tivesse cantando pra mim mesmo, pra me acalmar, pra me trazer outra sensação que me fizesse escapar do caos. “Eu Não Queria Ir Embora” é uma declaração pra mim mesmo, pra meu eu mais novo, mais ansioso. Como se eu tivesse tentando acalmar a parte dele que tá viva em mim até agora. [Ana] Seu trabalho é conhecido pela irreverência e por pautar temáticas combativas, de disputas de espaço, de poder, de representatividade – questões bastante coletivas. Como é para você entregar um trabalho mais reflexivo e existencial? Foi difícil se permitir desviar sua narrativa e falar sobre seus sentimentos e emoções, amigos, família? [Hiran] Foi um desafio gigante, mas eu gosto de me sentir desafiado pelas circunstâncias. Gosto muito de ousar e de buscar fazer coisas diferentes das que eu já fiz.Participações especiais
[Ana] A faixa “Voz do Destino”, que conta com a participação de Ivete Sangalo, é um dos pontos altos deste álbum. Como foi trabalhar com Ivete? Foi você quem escreveu as letras que ela canta? [Hiran] Sim, fui eu que escrevi. Trabalhar com Ivete é um sonho. Ela é realmente tudo que falam que ela é. Gentil, amorosa, muito atenciosa e uma grande amiga. [Ana] Vocês compôs as demais músicas já pensando na participação de Ivete, Melly e Colibri? O contraponto feito por Melly em Eu e Você é tão harmonioso que me leva a pensar que sim. Como foi a escolha dessas outras vozes? [Hiran] São meus amigos. O processo foi muito de convivência mesmo, eles estavam perto de mim enquanto eu estava compondo e criando, acabou sendo muito especial ter eles perto.Os planos de Hiran para o futuro
[Ana] Você já tem uma turnê planejada para divulgação desse novo disco?Tô montando isso agorinha. Já sei que o primeiro show vai ser em Alagoinhas, simbolicamente. Tô muito feliz em começar essa era na minha cidade, vai ser muito especial. Em breve teremos essas datas.
[Ana] Você mencionou em outra oportunidade que tem vontade de se apresentar em festivais de música alternativa como o Bananada e o Coquetel Molotov. Em quais outros espaços e círculos você tem a vontade de se apresentar? Você acredita que integrar o line up destes festivais como um ato político, esses espaços são locais de disputa? [Hiran] Quero muito me apresentar em teatros e em lugares onde a música pode ser consumida por inteiro. A vontade de colar nos festivais mais um tempo pra mim continua latente. Eu acredito que esses espaços são tratados como locais de disputa sim, mas eu não caio nessa. Amo muito fazer show e fico muito feliz por todo mundo que consegue mostrar sua arte nesses palcos pra essas pessoas. [Ana] O rap, o hip hop e o trap são gêneros que têm se difundido e transformado rapidamente no Brasil, com ênfase nos últimos anos. Como você, um artista jovem, negro, gay, nascido no interior da Bahia, enxerga a evolução desses gêneros no Brasil até o presente? O rap é um campo de disputa de narrativas? [Hiran] Eu acho que o rap, assim como os outros estilos musicais, caminhou muito nos últimos tempos, mas segue longe de estar no lugar ideal. Ainda há uma diferenciação de tratativa muito grande entre os artistas de rap. Os homens cis e héteros ocupam quase a totalidade dos espaços e os brancos acessam as coisas mais rápido. Acho que ainda tem um caminho longo pela frente.Você pode conferir o disco “Jaqueira” na íntegra aqui: