Em 2006, Lily Allen emergiu como uma artista que parecia já estar preparada. Dos pubs em Camden para as paradas britânicas, sua estreia foi improvável. Uma garota aparentemente despretensiosa, com cigarro na mão, vestidos curtos e sotaque londrino, escrevendo com a língua afiada e o sarcasmo de quem sabia onde estava mirando. Porém, mais do que insolente, Lily era perspicaz. Enquanto as popstars da época falavam sobre fantasias e amores platônicos, seu primeiro álbum Alright, Still (2006) descia ao concreto, apontando falhas sistêmicas em namorados, políticos e celebridades, com a mesma ironia capaz de arrancar aplausos e desafetos na mesma medida.
O tempo passou, o cenário mudou, e Lily seguiu com seus materiais. Vieram escândalos, sumiços e retornos. It’s Not Me, It’s You (2008) foi brilhante; Sheezus (2014), confuso; e No Shame (2018), introspectivo demais para as rádios — mas definitivamente o mais honesto. E então, o silêncio por sete anos.
Enquanto isso, ela virou uma atriz premiada, mãe dedicada, esposa do Hopper (David Harbour) de Stranger Things, e, como não poderia deixar de ser, protagonista de um divórcio midiático. Era o tipo de caos que qualquer artista pop transformaria em meia dúzia de metáforas discretas. Mas Lily Allen é do tipo que dá nome e sobrenome enquanto canta com sua voz suave.
Lançado em outubro de 2025, West End Girl marca o retorno da cantora e abandona qualquer camada de abstração. Este não é um álbum sobre sentimentos, é um álbum sobre fatos, esmiuçados com um nível de precisão que faria um advogado de divórcio corar. Lily entendeu que sumiu por tempo suficiente para que seu nome migrasse da aba “música nova” para “o que aconteceu com ela?”, e usou essa curiosidade a seu favor. Não tenta parecer atual à força — ao contrário, entrega um álbum que só poderia existir agora, depois da experiência acumulada de uma mulher que já foi ícone, esposa, mãe e, agora, narradora da própria vida conjugal.

O disco começa com uma ilusão de normalidade. “West End Girl”, a faixa de abertura, tem aquele tom de conto britânico com trilha sonora ensolarada. Mas, a partir do segundo verso, o céu fecha. Um convite para voltar a Londres, um papel no teatro, um marido decidido a não querer a própria esposa sob os holofotes, e então o vibrar de um celular na mesa sinaliza o início da queda. Daqui pra frente, o álbum só desce — não em qualidade, mas em profundidade.
“Ruminating” entra com força na situação extraconjugal com seu parceiro da época, e “Sleepwalking” revela o limbo emocional: Lily estava em uma relação com alguém que não a amava, mas não a largava. E então, sem aviso, vem “Pussy Palace”, uma das canções mais desconfortavelmente geniais da carreira da artista. Ela descreve uma visita ao apartamento do ex-marido, onde encontra um arsenal de brinquedos sexuais e evidências de que a monogamia do casamento, se existiu, era uma piada. O título não é metáfora: é literalmente um inventário.
A sequência do disco não segue uma linha do tempo previsível, mas se organiza com memórias intuitivas e guiadas pela intensidade. “Madeline”, uma das figuras centrais da dramaturgia, protagoniza uma das faixas mais íntimas do álbum. Aqui, Allen encena uma conversa com a suposta amante. E se você já pensou em “Becky with the good hair”, esqueça: Lily não trabalha com mistérios performáticos. Ela dá o nome e ainda imita o sotaque. Com ironia, acusa que o ex-marido não queria só uma abertura no casamento, mas um playground sexual.
Em “Relapse”, ela retorna ao território sensível da sua dependência química, um dos episódios mais turbulentos (e públicos) de sua trajetória — agora recontextualizado à luz do colapso conjugal, como se as recaídas do passado ganhassem motivos no presente.
Do ponto de vista sonoro, o álbum não tenta competir com a brutalidade das letras. A produção é limpa, minimalista, quase submissa à voz. Há batidas elegantes, sintetizadores discretos e um clima leve. Em qualquer outro disco, essa escolha pareceria falta de personalidade. Aqui, é estratégia: deixa que as letras respirem, que a narrativa fale mais alto que a complexidade sonora. Há, claro, alguns momentos de repetição — reflexo de como o trauma funciona: cíclico e insistente.
O disco encontra novos alvos, não menos afiados. Em “Nonmonogamummy”, Lily mistura ironia materna com a crise do casamento, zombando das contradições entre relacionamento aberto e a prática desastrosa de quem fingia maturidade pra não lidar com o abandono. Já em “Dallas Major”, ela escancara a experiência da volta aos aplicativos de namoro: “quase quarenta, cinco-dois pés de altura, mãe de duas adolescentes — isso te parece divertido?”.
“Fruityloop” fecha o álbum em seu aceno mais agridoce. Em vez de catarse ou redenção, Lily oferece resignação lúcida. “It is what it is, you’re a mess, I’m a bitch”, ela canta com a frieza de quem cansou de se explicar. Não há perdão nem vilania, apenas o retrato final de uma história onde todo mundo sai um pouco exausto, um pouco ferido — e muito mais honesto do que estava disposto a admitir.
West End Girl é o tipo de álbum que define uma carreira. Não por soar grandioso ou inventivo, mas por capturar, sem vaidade, o que é viver uma dor que vira entretenimento — e ainda assim manter o controle da narrativa. Lily Allen fez o que muita gente gostaria de fazer após ser traída, exposta e desmoronada: lançou um clássico.