Poucas coisas foram tão aguardadas, festejadas e históricas como a mais recente passagem de Madonna pelo Brasil. Em aproximadamente uma semana, a “Madonna Mania” que começou no Copacabana Palace se espalhou pelo bairro, pelo Rio de Janeiro e até pelo país: com outdoors, mobilização de fãs nacionais e internacionais, aumento significativo no número de turistas e hospedagens e até fantasias pelas ruas da cidade, em que só se ouvia falar na loira.
Fã da Madonna ou não, se tornou impraticável transitar pela cidade sem ouvir as dezenas de canções que eram tocadas em aparentemente todos os estabelecimentos abertos. Fugir das pessoas fantasiadas ou do noticiário também parecia missão impossível: mesmo dias antes da apresentação, a cidade parecia vibrar Madonna: sua presença, sua carreira, sua iconografia e seu legado imaculado.
Nas noites de quinta e sexta-feira que antecederam o show, uma amostra do que viria a seguir já era notória: com uma balaclava verde que escondia o rosto — mas não o entusiasmo da artista —, Madonna deixou seus aposentos no hotel e ensaiou no palco montado na praia, levando fãs, vendedores ambulantes e qualquer pessoa que passava perto em êxtase. Nós mesmos estivemos pela areia na sexta à noite, e presenciamos a multidão que se reunia para ver o “esquenta” do que seria uma noite histórica. “Borderline” na guitarra, “La Isla Bonita” e “Express Yourself” foram apresentadas quase em formato acústico, permeadas por uma Madonna animada e que arriscou até conversar com o público presente em português. Na mesma noite de ensaios, “Live to Tell” foi apresentada na íntegra, emocionando os presentes antes de Pabllo Vittar surgir ao palco e nos presentear com um ensaio da faixa “Music”, acrescida de um ritmo gostoso e brasileiro: o samba.
Já na manhã do show, mais loucura: fãs que haviam dormido na areia no dia anterior já se espremiam tentando se proteger do calor, enquanto mais fãs chegavam a todo momento e populavam a orla da praia. Trânsito fechado, esquema especial de segurança e revista nas ruas próximas, vagões entupidos de fãs, leques e alegria: mais indicativos de uma noite histórica. Nossa equipe se dividiu: um como imprensa regular, outro à convite da Deezer para cobrir também o espaço de convivência montado por patrocinadores. Lá dentro, comida e bebida à vontade, famosos, ativações para fotos e até varanda com sofá e área refrigerada. Mas o mais esperado por nós, o direito a ficar pertinho de uma das mulheres mais famosas do mundo.
Posicionados na grade do show, era possível ver o palco a poucos metros, mas muito além de alguns famosos e seguranças, a diversidade: fãs ávidos, mais velhos, mais novos, homens e mulheres, famílias unidas em prol da estrela pop. Todo tipo de gente se espalhava ali, no “vip” ou na areia, para vibrar na frequência da música.
Para começar, Diplo subiu ao palco para um set que mesclou brasilidades e outros tipos de batidas eletrônicas. Músicas famosas, o hit “Sua Cara”, que ele assina ao lado de Pabllo Vittar e Anitta e outros. Aqueceu, mas não emocionou. Meia hora depois do horário previsto, no entanto, a música ficou mais alta e a grade tremeu. De onde estávamos, ouvimos a voz de Bob, The Drag Queen — quase a cerimonialista da noite. A drag, que além de dançar no show também faz a apresentação dos atos e uma espécie de “narração” em alguns momentos, passou no meio dos fãs para chegar ao palco vestida de Maria Antonietta, uma referência clara ao figurino icônico usado por Madonna na performance de Vogue para o primeiro MTV Awards, em 1990.
Ali Bob já dava o letra: “isso não é apenas um show, isso não é apenas uma festa. É uma celebração”, e seguindo a proposta, a atmosfera do lugar mudou completamente. As luzes canalizavam a emoção para o centro do palco, enquanto um círculo gigante de luz se erguia e uma silhueta marcava a sombra, antes de girar e se revelar: Madonna. Com uma coroa que simulava também uma auréola e um figurino preto inspirado nos kimonos usados pela cantora em 1997, os primeiros acordes de “Nothing Really Matters” — single também de 97 e que ganhou mais vida agora — ecoavam pelo espaço, emocionando o milhão e meio de fãs que urraram o hit para a artista.
A partir dali, começava a história. “Everybody” e “Into the Groove” levaram o público ao delírio com coreografias e cores, começando nossa viagem no tempo. Logo depois e introduzindo uma versão mais nova de si mesma, Madonna nos levou ao CBGB’S: o primeiro clube em que se apresentou com seu primeiro single, “Burning Up”. Pouco antes de tocar o hit na guitarra, a cantora prometeu contar suas histórias como se lesse o diário, com detalhes que apenas os (milhares de) fãs do Rio saberiam.
“Open Your Heart” seguiu e nos levou à “Everybody”, o hit dançante que ganhou uma versão emocionante na turnê. Ao fim da apresentação da música, a vibrante pista de dança esvazia e o gigante globo de espelho que brilhava ao som da batida desce ao chão, enquanto um único dançarino permanece caído ao som do batimento cardíaco, que logo cessa. Representando o luto — e a epidemia de AIDS que matou centenas de amigos e conhecidos da cantora —, a artista estende um casaco com a famosa estampa de Keith Haring, um dos melhores amigos de Madonna, e também vítima da doença. “Live to Tell” foi antecedida por um trecho de “In This Life”, em que a cantora fala de Keith: “Sentada em um banco de praça, pensando em um amigo meu. Ele só tinha 23, e partiu antes da hora… “
Dali, o som de chuva trouxe a batida nostálgica e arrepiante de uma das canções e performances mais teatrais e emblemáticas do show. Com dezenas de imagens em preto e branco nos telões e sentada em um banco de praça, a cantora levou centenas de fãs às lágrimas ao som de “Live to Tell”, clássico de 1986. Cazuza, Renato Russo e Mauro Gonçalves, dos Trapalhões, foram alguns dos ícones brasileiros referenciados no momento.
Seguida por “Like A Prayer” e seus elementos religiosos tão característicos, o público seguia embalado pelo carisma e pela chuva de hits, até chegarmos aos polêmicos anos 90. “Erotica” trouxe a cantora para um ringue de boxe, seguido pela performance rápida mas memorável de “Papa Don’t Preach”. Aqui, sua versão “mais nova” vestia o famoso maiô da performance de “Like a Virgin” na Blonde Ambition, que causou uma excomunhão da Igreja Católica. Na mesma cama vermelha, ambas simulam a tão controversa masturbação feminina, com uma coreografia breve que referenciava o controle, a censura, a resistência, o amor próprio e o prazer.
O bloco seguiu com seu teor sexual e libertário por “Justify My Love”, “Fever” e “Hung Up”, que levou a multidão ao delírio. Pouco depois, Mercy James, uma de suas filhas, subiu ao palco para tocar piano enquanto a mãe apresentava a música “Bad Girl”. David Band, também filho da artista, já havia tido seu momento de brilhar em um solo de guitarra que remetia Prince e voltaria em breve para tocar violão ao lado da mãe. Estere, mais uma das crianças da cantora, veio ao palco para arrasar na coreografia durante “Vogue”, em que Madonna ostentou um figurino das cores da bandeira do Brasil, pouco antes de chamar Anitta ao palco para ser a “Ballroom Bitch” do Rio.
Mais tarde, “Die Another Day” trouxe lasers que rasgaram o céu do Rio enquanto a cantora e seu balé performaram uma coreografia hipnótica e poderosa, antes de dar lugar ao country do álbum “Music”. Ali, “Don’t Tell Me” divertiu antes de um pequeno set acústico acalentar a praia. “Express Yourself” veio de forma mais intimista, e “La Isla Bonita” marcou uma declaração de amor da cantora: “Essa bandeira, essa bandeira verde e amarela, eu a vejo em todo lugar, eu a sinto no meu coração, eu a sinto na minha b*ceta”. Irreverente e engraçada, a cantora demonstrou até timidez após soltar a frase. Agora em um momento inédito, “Music” chamou ao palco crianças e adolescentes que tocavam instrumentos de samba e, como visto no ensaio, embalaram a chegada de Pabllo Vittar ao palco.
Com mais homenagens à figuras político-culturais do nosso país, Erika Hilton e Fernanda Montenegro foram algumas das escolhidas para enfeitar o palco enquanto Pabllo e Madonna faziam história com a camisa e a bandeira do Brasil. Um bloco futurista trouxe “Bedtime Stories”, “Ray of Light” e “Rain”: com mais lasers e coreografias emocionantes. Dali, o fim se aproximava.
Em mais uma homenagem, dessa vez o telão se acendeu para Michael Jackson — e em um clima de duelo de dança, a silhueta de Michael brincava com a de Madonna. Ao fim, um abraço emocionante de duas das maiores figuras da indústria da música e uma mensagem emocionante: “Nunca consigo dizer adeus”. Já sentíamos o gostinho da despedida.
Um mundo de Madonnas surgiu no palco ao som de “Gimme All Your Luvin”: dançarinos com figurinos representando as dezenas de eras da artista para embalar o último sucesso da noite: “Bitch, I’m Madonna”. Com o hino de autoafirmação, a cantora se despediu do Rio, agradecendo em português e pedindo que o Rio de Janeiro não a esquecesse.
Agora: como esquecer? Em duas horas de apresentação, diversos figurinos, vídeos, trechos de coreografia e diálogo marcaram uma das noites mais plurais vividas no Rio. Tudo o que Madonna representa foi exposto: força, luta, irreverência e compaixão. Ao longo das músicas apresentadas, a rainha do pop não celebrou apenas seu incrível legado cultural e musical que se estende por 40 anos, mas também, o ato de sobreviver. Famílias e indivíduos de todas as gerações, convicções, religiões, orientações sexuais se divertiram e reuniram em prol de um único elemento: a música.
Com impacto econômico estimado em 300 milhões de reais para a cidade, os olhos do mundo observavam o Rio de Janeiro acender com a presença da estrela, que também conseguiu recolocar o cartão postal na rota dos shows internacionais. Poucos registros de ocorrências policiais e uma sensação quase inédita de segurança e união, podemos afirmar que a artista cumpriu sua missão em aproximar as pessoas com sua arte. Na verdade, Madonna fez da orla de Copacabana não apenas a maior pista de dança do mundo, mas um lugar em que a liberdade e pluralidade se tornaram elementos essenciais para a celebração da carreira da artista, da expressão humana e da excelência artística.