Estreou nessa quinta-feira (12) a cinebiografia da cantora Gal Costa, intitulada “Meu Nome é Gal”. O projeto, que conta com a direção de Dandara Ferreira e Lô Politi, surgiu posteriormente a produção de um documentário sobre a cantora, também idealizado pela dupla. “O Nome dela é Gal” é uma série documental de 2016 que busca contar, em quatro episódios, um retrospecto da vida da artista desde a infância. Já o longa-metragem, recém estreado nos cinemas e abençoado por Gal Costa, nasce da ideia de ficcionalizar essa trajetória e recontá-la a partir de um recorte temporal específico.
O filme conta a história da chegada de Gal ao Rio de Janeiro em 1966, quando possuía apenas 20 anos, passando por sua acolhida no estado por Caetano Veloso (Rodrigo Lellis), Gilberto Gil (Dan Ferreira) e outros artistas, até despontar nos desafios vividos pela cantora, em 1971, diante dos percalços da ditadura militar.
Meu Bem, Meu Mal
A escolha de retratar somente esses 5 anos é ousada e corajosa, o que definitivamente custou a obra alguns pontos.
Por um lado, a pretensão desse recorte permite emergir um novo formato de cinebiografia, cujo enfoque não se dá necessariamente sobre os grandes feitos da carreira da artista. O filme sai, inclusive, dos clichês das biografias de cantoras nacionais, marcadas por narrativas de ascensão e queda e temáticas de vício em drogas e romances tempestuosos, como são os filmes “Elis” e as minisséries “Maysa: Quando fala o coração” e “Dalva e Herivelto: uma Canção de Amor”. Se em outros projetos esses enfoques foram a forma escolhida de retratar essas figuras, em “Meu nome é Gal” é escandaloso adentrar no aspecto mais comedido da vida da artista.
A fuga dos grandes dramas trouxe protagonismo a desafios de ordem subjetiva que vão além dos percalços para se firmar enquanto mulher e artista, mas dizem de uma angústia existencial que parecia haver dentro de Gal. Em um resultado bem anticlimático, a obra acerta ao dar visibilidade para momentos pontuais da vida da cantora, como as visitas de sua mãe ao Rio de Janeiro, onde nos aproximamos de sentimentos humanos e triviais da protagonista.
Entretanto, para um filme de somente 87 minutos, resta uma sensação de que a magnitude de Gal não coube nas telas do cinema. Além de terminar de forma abrupta, ao longo dos quase 90 minutos o filme deixa Gal escapar em vários momentos, conferindo mais protagonismo a outros personagens. Apesar de serem um retrato da forma reclusa como a cantora se portava, teria sido importante que o filme soubesse contornar isso, voltando os olhares a protagonista, seja por meio da câmera, ou, no caso de Gal, da voz. Além disso, nesse recorte, momentos relevantes, como o duelo com as guitarras, em 1981, que eternizou a canção que dá nome ao filme, ficaram de fora.
Ao tratar sobre a ascensão da carreira de Gal Costa, a obra acaba sendo também um retrato da Tropicália. O que, apesar de deslocar certo protagonismo à Gil e Caetano, agrada os fãs de carteirinha do movimento ao nos colocar de frente para os principais ícones tropicalistas como: Torquato Neto, Rita Lee e Tom Zé. Há de se reverenciar como esses coadjuvantes souberam trabalhar com essa reprodução de tal modo que gerou um sentimento de estarmos vendo os próprios artistas quando mais jovens.
Meu nome (não) é Gal
Se esse descuido de perda de protagonismo não custa, porém, o valor de “Meu Nome é Gal”, boa parte disso se dá pela performance de Sophie Charlote. A atriz, que em um momento prévio ao lançamento pode desapontar por sua semelhança não óbvia com a cantora, mostra ser uma escolha acertada para o filme. Inicialmente, parte do meu incômodo pessoal era a dificuldade de assimilar o caráter doce, associado às personagens de Charlote, a figura marcante de Gal. O que meu desconhecimento deixou escapar é que essa seria a grande maestria da atriz. Com seu rosto e trejeitos angelicais, Sophia soube capturar a timidez de Gal quando recém-chegada ao Rio, sem deixar de lado sua eclosão quando se entende verdadeiramente como uma grande artista.
Brasil
A utilização de imagens documentais, que ilustram o cenário de surgimento da carreira de Gal no Brasil dos anos 60, são uma excelente forma de narrar sua história, indissociavelmente associada a repressão do período militar.
Entretanto, a utilização excessiva de um filtro que simula o resultado de uma câmera analógica, tanto sobre as imagens de arquivo quanto em cenas gravadas, gera uma fadiga visual. Trata de um esforço muito deliberado e desnecessário de reproduzir uma suposta estética vintage que já está bem colocada no bom trabalho da cenografia e figurino. Ainda que funcione pontualmente, a longo prazo ela enfraquece a potência das imagens.
Força Estranha
Apesar de tratar abertamente sobre os tormentos da ditadura, o filme faz isso sem essencializar a figura da cantora como uma revolucionária inatacável, trazendo também os medos que a sondavam diante das ameaças da tortura.
Sua sexualidade e relacionamentos, muito polemizados principalmente após sua morte, também emanam com naturalidade e de forma ponderada, o que demonstra o carinho dos idealizadores e deixa claro a intenção de homenagear, acima de tudo.
Essas escolhas foram fundamentais para não tirar o foco do que a própria Gal nomeou como seu único e eterno desejo: cantar. A escolha de utilizar, junto as gravações de Sophie, as irreproduzíveis canções originais foi essencial, nesse sentido, para trazer a força inenarrável de sua voz.
Apesar de valer apontamentos, é difícil criticar “Meu nome é Gal”. Sua sensibilidade com a maior voz do Brasil é encantadora e nos confere um sentimento de estarmos próximos à Gal Costa. A escolha por uma forma narrativa mais linear, que parte também desse cuidado, nos emociona na intimidade e no detalhe, mas há também de se reivindicar um final mais catártico — no completo oposto de polêmico — que desse conta da força que foi Gal Costa.