O sucesso do Drag Race Brasil foi imediato desde sua primeira edição no país

Muito mais do que os desafios, porém, o Drag Race Brasil escancara as potências da comunidade LGBTQIA+ brasileira

Em meio a um turbilhão de expectativas, anunciou-se, em dezembro de 2022, a chegada da versão brasileira do consagrado “RuPaul’s Drag Race”: o Drag Race Brasil.

As perguntas eram vastas. Os fãs da franquia especulavam: quem seria a apresentadora? Quais seriam as drags escolhidas? Quem serão os jurados? Quais músicas ganhariam interpretações nas batalhas de lipsync?

Foi em meio a essas especulações que a Paramount+ anunciou a artista Drag Queen como apresentadora. Além de Dudu Bertolini e Bruna Braga como jurados e às 12 queens que competiriam pela coroa.

Era tudo que tínhamos a princípio, alguns nomes – pouco conhecidos por boa parte do público – e um amontoado de desejos com relação a um formato já consagrado pela icônica RuPaul.

E afinal, o Drag Race Brasil cumpriu com essa expectativa?

Essa resposta é, indiscutivelmente, subjetiva. Há de se dizer, porém que em meio a algumas intempéries – e rinhas no Twitter – a versão brasileira deixou a sua marca.

Conheça, portanto, 3 motivos por que o Drag Race Brasil já é um sucesso.

Abraçou e deu visibilidade para a cultura brasileira (em todos os sentidos)

Já é de conhecimento geral que o Brasil possui uma diversidade cultural ímpar. Toda a história do país, somada à sua vasta extensão territorial, fazem dele um amontoado de manifestações culturais das mais diversas origens.

É um desafio, portanto, tecer alguma representação que dê conta dessa magnitude. Podemos dizer que o Drag Race Brasil fez isso? Não por completo. É claro que o programa excede um pouco em símbolos caricatos como o verde e amarelo, o carnaval e a estética tropical. Ainda assim, soube fazer das múltiplas possibilidades uma virtude do programa.

Uma ball de festas brasileiras

O episódio 8, da Ball, uma dinâmica já consagrada do formato, convidou as queens a desfilarem na passarela, looks de três festas brasileiras: bate bola (personagem do Carnaval carioca), maracatu (ritmo musical e dança com origem em Pernambuco) e Festival de Parintins (festa popular que acontece no município brasileiro de Parintins, no interior do Amazonas). O resultado na passarela não poderia ser diferente. As drags impressionaram com visuais únicos que exalavam uma mistura perfeita entre a arte drag e a cultura raiz do Brasil. A performance fez emergir algo jamais visto, que mora longe das representações comuns da mídia internacional, especialmente dos veículos de entretenimento.

Para além das escolhas da produção, as próprias drags souberam explorar essa brasilidade com perspicácia e respeito, trazendo personagens históricos. Shannon Skarllet, por exemplo, se destacou no episódio dois por seu look que fazia referência a Chica da Silva. Em uma mistura de barroco com drag, Shannon trouxe para tela do reality a presença de uma ex-escrava cuja história conta sobre o passado do país. Alguns episódios depois, a queen trouxe para passarela uma releitura das lavadeiras, uma profissão histórica no Brasil, muito atrelada à escravidão. A confeccão, conceito e performance do figurino deixou os jurados – e o público – boquiabertos.

Shannon Skarlett desfilando na categoria “Minhas raízes” com look em homenagem à Chica da Silva (Reprodução/ Draglicious)

O programa foi perspicaz até mesmo na releitura de falas icônicas da versão original, pelas quais o público ansiava. O categórico “Can I Get an Amen up in here?” entoado ao final dos episódios pela RuPaul foi substituído por “Posso ouvir um axé?” respondido em coro pelas participantes com “Axé”.

Snatch Game

Digno de um subtópico, é impossível não falar do tão esperado Snatch Game, pelo qual se aguardava justamente pela ânsia de ver quem – do vasto cenário de personalidades icônicas brasileiras – seria escolhido para ser representado. Desde o princípio do episódio, as escolhas das queens já nos divertiu.

(Reprodução/ Draglicious)

Afinal, o que esperar do encontro de Narcisa Tamborindeguy, Regina Rouca, Dilma Rousseff e Inês Brasil? Uma grande questão para o espectador brasileiro que assistia as versões gringas era não captar referências oferecidas pelas participantes, por serem nichadas ao país. Sendo assim, poder captar as piadas tornou o Snatch Game – que já é um deleite das outras versões – ainda melhor.

Grag Queen — a grande hostess da edição

Um dos grandes receios que se tinha com relação a um Drag Race Brasil era sobre quem iria apresentar. Isso porque a versão original do reality nasceu 100% atrelada a figura da RuPaul e desde as falas icônicas até os figurinos tudo só parecia fazer sentido se fosse nela.

Quando anunciaram Grag Queen como a Hostess, esses receios aumentaram ainda mais. A artista, que ficou conhecida por vencer outro programa produzido por RuPaul, não era tão popular por aqui e o reality Queen Of The Universe não teve impacto significativo no nosso mercado.

Essa falta de intimidade e principalmente, o nervosismo de Grag Queen em sua estreia como apresentadora, deixaram as coisas menos interessantes no início da temporada, mas não tardou para começarmos a simpatizar com sua figura. O estranhamento inicial veio de um sentimento de não conhecermos sua personalidade ou a personalidade da sua drag. Porém, a construção dos episódios, ou mesmo as aparições da apresentadora na mídia, permitiram contornar essa distância, construindo uma relação bem clara da host com o público e as participantes.

(Reprodução/ Pride.com)


O programa exitou em fazer isso com autenticidade. A afinidade com Grag não espelha a relação que construímos com RuPaul e nem poderia. A cantora tem 28 anos e como dito, não era um nome já muito conhecido na cena nacional. Mesmo ao simular a relação maternal que as concorrentes têm com a “Mama Ru”, o Drag Race Brasil a reitera de tal forma que, preservados o respeito e admiração, propõe uma relação mais horizontal entre a host e as participantes, até pelo fato das vivências serem mais similares. É interessantíssimo ver Grag quebrar essa suposta intocabilidade de quem comanda o programa e dar sua personalidade jovem e descolada ao reality.

Para além das interações, seu desempenho enquanto performer e apresentadora merece reconhecimento. Grag soube aproveitar de sua bagagem enquanto atriz e cantora para conferir entonações e movimentos precisos às suas aparições e as caricaturas do Drag Race. Ao final da temporada, já podemos dizer que – assim como deve ser- ela se tornou o rosto do programa.

Uma representação dos e para a comunidade LGBTQIAP+ brasileira

Por mais que as outras franquias já explorassem muito bem as glórias e desafios de ser uma pessoa LGBTQIA+, essas histórias ganham uma nova dimensão dentro da realidade social do Brasil. Todo o combo que constrói o programa, produção, apresentadora, jurados e, principalmente, as queens abordaram com força e respeito a realidade da comunidade brasileira, trazendo questões relacionadas ao racismo, à sorofobia e à vivência em periferia. Muito além de narradas, essas histórias foram contadas na passarela, através da arte de cada uma das participantes.

No episódio 6, após compartilhar a história de como contraiu HIV aos 17 anos, Hellena Malditta usou no desafio da semana um look com dois brincos, um escrito PEP, nome dos medicamentos que podem ser tomados após a exposição ao HIV, e outro com a sigla SUS, em referência ao sistema de saúde brasileiro e sua atuação na prevenção e tratamento do HIV. Em uma passarela glamourosa e emocionante, a queen contou aos espectadores, inclusive os de fora do país, não só sua história pessoal, mas também a história coletiva da comunidade brasileira.

(Reprodução/ Paramount+)

Muito além das dores em frente às câmeras

Muito mais do que os desafios, porém, o Drag Race Brasil escancara as potências da comunidade LGBTQIA+ brasileira. Contando essa história por uma perspectiva simbólica, alegre, cômica e artística.

Seja nas piadas, músicas ou bordões, existe uma socialidade exclusiva deste público. Deste modo, é uma satisfação para o espectador assistir a um programa que incorpora esse universo, a princípio tão marginalizado. Em vários momentos, as participantes e a própria Grag falam de forma bem humorada sobre às dinâmicas do universo homoafetivo, como os aplicativos de namoro. Além das referências a memes muito atrelados à comunidade, não só pelas personagens do Snatch Game, como em outras dinâmicas, como o ensaio fotográfico no qual as drags se vestiram de Grávida de Taubaté.

Pode se dizer que a mágica do formato original de traçar uma representação que não seja sobre sofrimento encontra abrigo no Drag Race Brasil. Ao não conectar os desvios das normas de gênero e sexualidade exclusivamente ao martírio, o reality dá lugar à potência LGBTQIA+. Dentro do contexto brasileiro isso se torna ainda mais claro, não só pela riqueza cultural da qual falamos lá em cima, mas pela energia de um povo que faz da arte a reinvenção de seus desafios.

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