Quantos são os desafios de se recontar uma história tão amada por um público exigente, ao passo em que se quer repaginar e propor novidades? Até onde é possível mexer, reinventar e surpreender? Com uma fã base extremamente crítica, a terceira montagem de Wicked foi anunciada sob muita polêmica.
Com o mesmo duo de protagonistas que tornaram a história conhecida e aclamada no Brasil (Myra Ruiz e Fabi Bang, que comandaram as duas montagens anteriores e dublaram Cynthia Erivo e Ariana Grande na versão cinematográfica da história, inclusive), o Ateliê de Cultura em parceria com o Instituto Artium resolveram fazer uso dos direitos de produção da história para colocar o mundo de Oz de volta aos palcos com algumas liberdades criativas.
Enquanto a primeira versão chegava aos palcos em 2016 idêntica ao musical da Broadway: com as mesmas perucas, figurinos, iluminação e cenários, a versão de 2023 já veio totalmente repaginada. Sim, as músicas continuavam as mesmas, bem como a história conhecida anteriormente, mas o esforço nas alterações deu certo. Praticamente todas as sessões da “curta” temporada esgotaram, com fãs sendo premiados por irem ao teatro assistir a mesma peça mais de 30 vezes.
O que torna Wicked tão cativante — ou viciante — não é nenhum segredo: a história de coragem, bravura, amizade e seus desafios emociona até os desavisados. A força das músicas e a paixão do elenco ajudam a potencializar o efeito, mas é fato que com a produção do filme (também bem sucedido), qualquer teatro ficaria pequeno para uma nova temporada. E aconteceu.
Com mil ingressos sendo vendidos por dia, a nova montagem foi anunciada no dia da estreia do filme, em novembro. De lá pra cá não parece ter passado tanto tempo, mas foi o suficiente para deixar o público em polvorosa — e os críticos de fotos também. Isso porque, a cada anúncio, vazamento ou teaser da nova produção, não faltava esforço para atacar (ou defender) as propostas da montagem. Se arriscando em mais uma non-replica, ou seja, em criar uma versão diferente da Broadway (como foi a de 2023), a curiosidade era enorme, e o rigor do público também.
Noite de estreia, casa lotada. Com capacidade para pouco mais de 1500 pessoas, o Teatro Renault parecia abarrotado. A ideia de colocar mais de 7 displays para fotos no foyer não parece ter sido das melhores: enquanto os assentos não eram liberados, certo tumulto se instalou enquanto os fãs se dividiam entre tentar tirar fotos, ir ao banheiro ou formar filas para os banheiros. Tudo muito instagramável, tudo bastante caótico.
Lá dentro, logo de cara, a primeira surpresa: o proscênio (a grosso modo, a parte de “fora” dos palcos, que vemos com as cortinas fechadas) exibia a fachada de um livro, enquanto uma projeção trazia um efeito de movimento e magia muito interessante. Começo da peça, livro aberto, “Sem Perdão a Bruxa” começava com outra notória mudança: com uma orquestra de 16 músicos, as canções soavam muito mais ricas, encorpadas e satisfatórias. Não vamos dar spoilers aqui, mas vamos dar um overview das mudanças e das opiniões mais gerais.
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Completamente repaginado, todos os cenários do musical são novos, funcionais e de encher os olhos. Com uma clara inspiração no filme, a Universidade Shiz e a Cidade das Esmeraldas ganham vida de forma muito mais dinâmica (e bonita) do que na última versão, que abusava dos telões de led e gerou a insatisfação dos fãs. Quem pediu cenários práticos, recebeu. Com muito investimento, muitos efeitos especiais surgiram para potencializar a magia de Elphaba e dar muito mais brilho às cenas e a história: quase todos muito bem-vindos.
Mas se a alma de uma boa peça com uma boa história depende de um bom elenco, temos um sentimento misto. Sim, Myra Ruiz está em seu melhor momento vocal e entrega uma performance bem mais hipnótica do que nas montagens anteriores. Seu carisma e química com Fabi Bang seguem intocados, tornando a dupla magnética e irresistível desde 2016. Fabi, por sua vez, dosa perfeitamente o tom cômico com a maturidade adquirida pelo papel em todos esses anos, e segue um dos melhores nomes do elenco. Nas novidades, Karin Hils, ex-Rouge, dá vida a Madame Morrible e brilha no papel — embora seu figurino insista em não fazer sentido, dando um ar de kimono à uma personagem não asiática. Claramente inspirado no filme, essa adaptação não funcionou no palco.
Outra coisa que insiste em não funcionar é a escalação do Mágico de Oz. Agora interpretado por Cleto Baccic (que também é produtor cultural, fundador e presidente do Ateliê de Cultura), o personagem segue sem a dinâmica galanteadora ou charlatã do personagem. Vocalmente fraco e sem o carisma do papel, as aparições do mágico deixam suas cenas maçantes. Se por um lado o personagem em si já não tem os melhores momentos na peça, o teor político que salvava sua personalidade desapareceu, enfraquecendo a importância do polêmico Mágico.
O Fiyero de Hypólito brilha, entregando vocais, coreografias bem executadas e devolvendo o charme para esse personagem que causava extrema estranheza na última montagem. Embora a possível bissexualidade do príncipe fique aparente apenas no figurino (ótima sacada, inclusive), a química de Hypólito com as personagens é bem mais gostosa de se ver e é um dos acertos da nova produção.
Luisa Bresser está incrível como Nessarose e entrega tudo o que é pedido em seu número do segundo ato, enquanto Thadeu Torres conquista e rouba a cena com seu querido e acertado Boq. A caracterização de todos os animais, no entanto, não agrada tanto: de Dr. Dillamond aos macacos voadores e o leão, todos erram na maquiagem e deixam a desejar — crítica construtiva, já que o teatro permite alterações e melhorias para as próximas sessões.
Alguns deslizes técnicos, como cordas do vôo não utilizadas que são erguidas diante do público sem qualquer disfarce de luz ou com membros da produção que aparecem em cena para mover cenários sem uma imersão dos mesmos na narrativa, quase quebram a magia de um espetáculo que tem tudo para ser uma das produções mais “visuais” de Wicked; seja pela quantidade de cenários, o uso de luzes e efeitos ou coreografias de encher os olhos.
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Para as próximas apresentações, fica a torcida para alguns refinamentos e para que o olhar do diretor permita que as cenas entreguem um pouco mais de emoção nas causas e efeitos. De nada adianta os personagens voarem e surgirem no palco se os atores não tem tempo de reação. Apesar de parecer com a mesma duração das outras versões, algo na montagem de 2025 parece corrido. Em alguns momentos houve a sensação dos personagens estarem mais preocupados em darem as falas e seguirem as cenas do que demonstrar emoções perante aos recursos narrativos — algo que pode ser causado pelo nervosismo das primeiras sessões, mas que também pode ser corrigido com uma visão atenta e afetuosa da direção no futuro.
Mesmo com prós e contras, a nova montagem de Wicked se demonstrou satisfatória. A ótima adição dos muito cenários e iluminação realmente faz diferença quando somadas aos novos efeitos e coreografia.
Quem espera o purismo Wicked de 2016 talvez torça o nariz, mas em uma época em que a história abraça novos públicos e voa para novos horizontes (principalmente com o filme tão aclamado), permanecer parado no tempo parece ir contra tudo que a própria história propõe. Com todas as ousadias, modificações e propostas brasileiras, não é atoa que temos uma versão tão apaixonada e aclamada por fãs do mundo inteiro. O tempero brasileiro é real, e quase todos os novos elementos contribuem para que a história se revele não apenas uma receita de sucesso, mas um banquete quase impecável que se mantém fresco e interessante a cada novo show.