Em meio à escassez de conteúdo no período de pandemia, onde os grandes lançamentos do cinema foram adiados e as grandes produções interrompidas, eis que surge das trevas, o responsável por alimentar os canais de teoria nerd pelos últimos anos e que garantiu o conteúdo do próximo mês: o Snydercut!
Na manhã do dia 20, o diretor Zack Snyder realizou uma chamada de vídeo na rede social Vero, exibindo o filme “O Homem de Aço” (2013) e comentando durante a transmissão. Ao final, Henry Cavill, intérprete do Superman, surge na chamada e junto com Snyder, respondeu perguntas de alguns fãs, concluindo por oficializar que “Zack Snyder’s Justice League”, o Snydercut, é de fato real e que ele verá a luz do dia na HBO Max, o serviço de streaming da Warner ainda a ser lançado, em 2021.
O tal do Snydercut
Para você que por acaso não faz ideia do que se trata o Snydercut, uma aula de história à seguir: após reintroduzir a nova versão do Superman em “O Homem de Aço”, Zack Snyder foi incumbido de levar adiante a expansão do universo da DC Comics para as telonas. O fim da trilogia do Batman do Christopher Nolan, mais o sucesso da Marvel Studios, exigiram que a Warner se apresasse na introdução desse universo e assim nasceu “Batman Vs Superman: a Origem da Justiça” (2016). Polêmico desde a escalação de Ben Affleck como o novo Homem-Morcego, “BVS” chegou três anos após o lançamento de “O Homem de Aço”, com meia hora de filme cortado, devido a sua longa duração de três horas, muitas sequências de devaneios e ilusões, falta de ritmo e quebra de tensão ao parar o filme para apresentar situações que só seriam relevantes no filme da Liga da Justiça e muitas decisões particulares da visão que o Zack Snyder tinha daqueles personagens e que muitos fãs não concordavam (Martha) e isso teve consequência!
Batman Vs Superman foi duramente criticado, atingido uma média de 27% no Rotten Tomatoes e apesar de passar longe de um fracasso financeiro, com a sua bilheteria totalizando em mais de 873 milhões de dólares, o filme ficou abaixo da expectativa do estúdio, que esperava que a produção que uniria os dois maiores heróis de todos (e a união com a Mulher Maravilha no final, completando a Trindade) chegaria a marca de 1 bilhão. “Liga da Justiça” começou a ser filmado duas semanas após o lançamento de “BVS” e sentindo o peso das críticas. Zack Snyder permaneceu na cadeira de diretor, porém o filme que antes seria uma “Parte 1” e depois uma “Parte 2”, prevista para ser lançada em 2019, virou um filme só e com a exigência de que ele fosse mais leve do que a visão sombria dos filmes anteriores.
O longa foi filmado e entrou no processo de pós produção, porém no dia 22 de maio de 2017 foi divulgado que Zack Snyder estaria deixando o filme da Liga da Justiça devido à uma tragédia pessoal e que Joss Whedon, diretor e roteirista dos dois primeiros filmes dos Vingadores e que havia sido anunciado semanas antes como diretor do filme da Batgirl, iria assumir o projeto e comandar refilmagens para finalizar o filme. Foram nessas refilmagens que houve a polêmica do bigode do Henry Cavill, que estava filmando “Missão: Impossível – Efeito Fallout” (2018) e que por contrato, ele estaria proibido de raspar o bigode. Acarretou então que o ator filmasse todas a suas cenas como Superman de bigode, que seria removido digitalmente. Outro ponto polêmico foi que por exigência do até então presidente da Warner, Kevin Tsujihara, o filme da Liga da Justiça deveria ter duas horas de duração. O material bruto de Zack Snyder cogitava ter mais ou menos um pouco mais de três horas!
“Liga da Justiça” chegou aos cinemas no dia 16 de novembro de 2017, com uma perceptível mudança de tom do que havia sido estabelecido até então nos filmes anteriores. Um filme muito mais amigável para atrair um público mais jovem, destacando o otimismo e esperança dos heróis, porém sem personalidade ou uma identidade que o destacasse. Acarretou que o filme não era bom o suficiente para sobreviver ao boca a boca das semanas seguintes e também desagradou aqueles que eram defensores de “Batman Vs Superman” e gostavam da visão particular do Zack Snyder. Isso sem mencionar o bigode digitalmente removido do Henry Cavill, que deu uma aparência bizarra para o Superman. “Liga da Justiça” foi um fracasso nos Estados Unidos, não chegando nem alcançar 700 milhões de dólares ao redor do mundo, decretando não oficialmente o fim do Universo Estendido da DC (DCEU), que a partir desse ponto focaria nos filmes individuais, sem uma preocupação em ligar os filmes um com o outro.
No entanto, após o lançamento de Liga da Justiça, muitos rumores começaram a sair e ganhar força de vária fontes. O maior de todos é que o filme de Zack Snyder havia sido exibido para um grupo seleto de pessoas e que o corte dele seria “inassístível”. Snyder então teria sido demitido de Liga da Justiça e Joss Whedon já havia sido chamado para reescrever o filme muito antes do divulgado e acabou que o suicídio da filha do Snyder, foi conveniente para a Warner como uma justificativa plausível para afastá-lo do projeto de uma forma não negativa aos olhos do público. O próprio Zack Snyder e sua esposa (e produtora dos filmes) Deborah, seguiram apoiando o filme como se estivesse tudo bem, mas depois todos perceberam que não estava!
Os fãs fervorosos de Zack Snyder, também apelidados de “snydetes”, se juntaram em uma única e barulhenta voz contra a Warner, contra o Joss Whedon, alegando que eles haviam estragado o filme de “Snydeus” (como muitos desses fãs se referem ao diretor) e exigiam que o estúdio então lançasse a versão “original” da Liga da Justiça, com a visão que o Zack Snyder tinha do filme. Nascia aí o movimento e a hashtag #ReleaseTheSnyderCut! O barulho foi tão grande que saiu da internet para ganhar folhetins e faixa de avião na San Diego Comic Con, até conseguir a proeza de aparecer em um telão na Times Square em Nova York.
Apesar do barulho, o Snydercut sempre foi uma lenda urbana, alimentada por uma bolha muito pequena no vasto cenário de cultura pop. O filme do Zack Snyder nunca foi finalizado e o Whedon tomou outros caminhos que não condiziam com a visão original, porém, vez ou outra, surgiam vozes relevantes no cenário da cultura pop e alimentavam a esperança desses fãs. O cineasta e fã de quadrinhos Kevin Smith disse em 2019 que o Snydercut existia, mas que não estava finalizado. Era uma questão do estúdio dar alguns milhões de dólares para o Snyder finalizar o filme; Jason Momoa, o Aquaman dos filmes da DC, escolhido para o papel pelo próprio Zack Snyder, fez um vídeo com o diretor, confirmando que havia visto o Snydercut e que era incrível; e o próprio Zack Snyder alimentou o movimento, postando imagens e storyboards da sua versão de Liga da Justiça no Vero, revelando que na sua versão o Caçador de Marte apareceria e que o Superman usaria o uniforme preto que ele usa nos quadrinhos quando retorna da morte.
Movimento #ReleaseTheSnyderCut
No início desse ano, a hashtag #ReleaseTheSnyderCut ganhou forças novamente quando o próprio Snyder e o elenco de Liga da Justiça tuitaram a hashtag, levantando as primeiras teorias de que o Snydercut existia e poderia ser um forte material para a HBO Max, junto com o episódio especial de Friends, como um diferencial de conteúdo nessa era dos streamings. Porém mais uma vez o assunto esfriou, até a semana passada, onde novos rumores surgiram de que Zack Snyder teria se encontrado com produtores da Warner, exibido a sua versão do filme e que se ele tivesse a aprovação deles, o Snydercut seria oficializado. Nessa quarta-feira, a novela chegou ao fim!
#ReleaseTheSnyderCut pic.twitter.com/wssMmlPqEK
— Gal Gadot (@GalGadot) November 17, 2019
— Ben Affleck (@BenAffleck) November 17, 2019
“Zack Snyder’s Justice League” chegará na HBO Max, em 2021, como uma produção de quatro até seis horas e cogita-se a possibilidade de lançar como um filme gigantesco ou uma minissérie. A Warner vai bancar algo em torno de 20 a 30 milhões de dólares para finalizar o filme, parte da equipe que trabalhou com Zack Snyder retorna, como também o elenco original, ao que tudo indica, para inserções de áudio em cenas de diálogo. Henry Cavill, que desde Liga da Justiça não voltou a interpretar o Superman e muito se falou que ele deixaria o papel, disse que a experiência de viver o Superman era inigualável e demonstrou interesse em concluir a visão de Snyder para o arco do personagem e dessa vez, sem o bigode!
Ontem (20) então foi um dia de celebração para muitos fãs e páginas de cultura pop, celebrando como vitoriosos de uma guerra. Frases como “o bem venceu” eram recorrentes nos grupos de Facebook! Contudo fica cada vez mais preocupante essa ilusão do autoritarismo dos fãs como voz ativa dentro da indústria. O que começou como filmes com um número excessivo de fanservices, ironicamente “Batman Vs Superman” é conhecido como um desses filmes, agora se transformou em grupo focal nas redes sociais sobre o que o fã quer de verdade. Consequências podem ser vistas nas duas últimas temporadas de “Game of Thrones”, no barulho de muitos fãs saudosistas de Star Wars em “Os Últimos Jedi” e por consequência na conclusão vazia e covarde em “Ascensão Skywalker”; até elementos que poderiam ser considerados positivos como o redesign do Sonic, no final apenas criou a ilusão que o filme que antes para eles seria ruim, agora era bom, sendo que o filme é exatamente o que o primeiro trailer divulgava, com exceção de ter o visual fiel do personagem!
Não há problema em você querer fazer uma obra que agrade os fãs. Pelo Contrário! “Vingadores: Ultimato” é o exemplo mor de uma obra que sabia muito bem o que os fãs queriam, o que faria com que eles mais vibrassem na sala de cinema, mas ainda assim, que levaria a narrativa pelo melhor caminho. O filme determinou o que os fãs queriam e não o inverso! O problema é que os exemplos anteriores mais se comparam à choro e escândalo de um seleto grupo de fãs, e não os mais saudáveis. Afinal, é bom reforçar que muitos fãs da DC também não gostaram da visão do Zack Snyder para os filmes e a abordagem dos personagens (Superman messiânico, Batman assassino) e o comportamento dos “snydetes” em sua maioria eram agressivos – mas não todos, pois parte do movimento do Snydercut também ajudou a arrecadar mais de 100 mil dólares para prevenção de suicídios.
“Snyder que estava certo”, “a Disney boicota a DC”, a Warner se rendeu a “Marvelização” dos filmes de heróis” etc.
Esse comportamento reacionário de teorias da conspiração, sempre em busca de um vilão maior para culpar e boicotar novos projetos foi até ridicularizado semanas atrás em um dos episódios da série animada da Arlequina, em que dois nerds adultos reclamam da série com comentários machistas, enquanto vestem as camisas “Release The Snyder Cut” e “Os Últimos Jedi não é canônico”. Era para ser uma piada, mas com esse anúncio do Snydercut, você legitima e propaga como certo o comportamento do fã tóxico que representa essa paródia.
O movimento do Snydercut abre precedentes também para outros diretores que tiveram sua visão mutilada pelos grandes estúdios, como Josh Trank com “Quarteto Fantástico” (2015) e David Ayer em “Esquadrão Suicida” (2016). O próprio Ayer brincou sobre isso no twitter e outros lançaram a hashtag #ReleaseTheAyerCut e me desculpem os fãs de Esquadrão Suicida, mas eu entendo a curiosidade mórbida envolta do Snydercut, mas vocês realmente querem outro Esquadrão Suicida do David Ayer? Seria os estúdios tendo que assumir todos os erros já cometidos e gastar milhões de dólares se redimindo (se isso virar tendência, vou começar a campanha para o Sam Raimi voltar e fazer seu Homem-Aranha 4, que foi cancelado dando início a franquia do O Espetacular Homem-Aranha).
Claro que no fim quem manda e decide são os estúdios e agora em um momento como a pandemia, onde nenhuma produção está podendo filmar, nem ser lançada nos cinemas, enquanto a Netflix está faturando horrores, o filme do Zack Snyder caiu como uma luva para atrair assinantes para o HBO Max. Lançando seu streaming com vantagem em comparação com o Disney+, que ainda não chegou na maioria dos países e está escasso de conteúdo novo. Todavia aos olhos fanáticos dessa base de fãs, eles foram responsáveis por isso ter acontecido e também estão ganhando visibilidade por outros canais de entretenimento com frases como “vocês conseguiram!” e saber que esse movimento, apesar de que para alguns seja apenas justiça, para muitos é legitimar o comportamento tóxico e expansivo da comunidade nerd, em um cenário cada vez mais polarizado, como futebol e política.
Política essa que aliás, cada vez mais sofre com ameaças à democracia e ao respeito pela opinião alheia e mais se aproxima da visão de uma figura messiânica e autoritária que irá eliminar os “inimigos” que não concordam com sua opinião e aparentemente, ontem para os fãs de Zack Snyder, “o bem venceu” (flashbacks nada agradáveis passam pela minha mente)! Mas quem eu estou tentando convencer afinal? Você é fã e só quer service, não é mesmo?