A magia presente nos filmes da Disney/Pixar é incomparável e extremamente identificável. Causar emoções profundas como apatia, saudade, nostalgia e tristeza não é pra qualquer um, mas a união destes estúdios sempre consegue ir além. Todos os seus lançamentos são sempre muito aguardados, justamente por essa construção de anos e anos, lançando produções icônicas que permeiam até hoje o inconsciente e o coração de muita gente, independente de terem surgido há 10 ou 30 anos atrás. Em Soul, isso não foi diferente, e mesmo não parecendo possível, foi ainda mais adiante.
A nova animação tem roteiro assinado por Pete Docter, Kemp Powers e Mike Jones e acompanha o musicista apaixonado por jazz, Joe Gardner – dublado pelo incrível Jamie Foxx -, que recebe um convite para uma oportunidade única na vida: exercer sua paixão pela música de forma que seja apreciada como deve ser. A grande realização de um sonho, assim como soa.
Joe é um músico frustrado por não conseguir viver do jazz – estilo musical que ama desde a infância. Por conta deste grande sonho, ele acaba ficando cego para todas as outras coisas à sua volta e vive em função de encontrar sua grande chance na música. A jornada dele começa a mudar, depois de um acidente (bem bobo e irônico), que faz com que ele perca a vida. Tentando voltar a viver para realizar seu maior desejo, Joe finge ser um tutor no plano espiritual e assim é apresentado para 22 (Tina Fey), uma alma jovem, rebelde e divertida que se recusa a completar a jornada de aprendizado no pré-vida. Cheia de apatia e inseguranças, 22 é o oposto de Joe, ele quer mais do que tudo voltar à Terra e finalmente ter sucesso, acreditando fielmente que seu único propósito na vida – a música – ainda não foi cumprido como deveria. Já ela só quer continuar sendo uma alma, tudo por puro medo do que possa ser a vida na Terra.
Embora pareça um aspecto bem clichê, perder a vida para aprender a valorizá-la ganha uma perspectiva muito mais intensa e profunda no filme. Soul usa justamente dos questionamentos humanos e de dúvidas naturais e inerentes, para estabelecer com muito humor a sua lição final. De um lado, o pós-vida se apresenta como uma longa esteira para um grande ponto brilhante e desconhecido, de outro, o pré-vida se baseia em um grande salto de coragem para um grande ponto azul, também desconhecido para as novas almas.
Dentre tantas metáforas abordadas na animação, a maior delas está ligada a alma e suas vocações. Quando Joe e 22 encontram Moonwind, – um místico que transita entre o plano real e espiritual – são apresentados à ‘zona’, lugar para onde as almas vão quando se encontram em estado de imersão total (ou perdidas). Se alguém se dedica demais a algo que gosta, a ponto daquilo se tornar negativo, sua ‘alma’ entra em um lugar ruim e acaba vagando sem propósito. Já em outro momento, somos alertados em cenas sutis, de que nossa vocação na terra independe de qualquer plano astral, mas sim de nós mesmos, de nossa vontade e curiosidade. Irônico, não?
Mais do que divertida, a animação da Pixar é sensorialmente encantadora e visualmente detalhista
Uma grande qualidade do filme são seus efeitos visuais e sonoros, que ditam uma experiência única para os sentidos. Em Soul, diferente de tudo que a Pixar já apresentou, 3D e 2D se mesclam para tornar a experiência da animação ainda mais incrível e divertida. No plano espiritual, além de almas fofas e graciosas em 3D, temos os “Zés”, as entidades sem gênero em 2D, responsáveis por coordenar tudo no céu. Os Zés, inclusive, foram inspirados em esculturas de arame reais (recomendamos o episódio 01×02 de ‘Por Dentro da Pixar’ que fala sobre eles!) É graças ao uso deste tipo de animação e do “abuso” na iluminação dos tons, que o plano espiritual se mostra ainda mais profundo e encantador. Sem dúvidas um dos cenários mais difíceis de terem sido criados pelo estúdio, na mesma intensidade que consegue ser o mais original.
Com uma ambientação incrível, a trilha sonora composta por 42 músicas originais faz uma brincadeira direta com o nome da produção (Soul – alma em inglês e gênero musical afro-americano), e apresenta arranjos incríveis com canções que se entrelaçam aos seus personagens de um jeito notável. A responsabilidade por despertar a emoção sonora do filme fica a cargo das composições do pianista norte-americano Jon Batiste (indicado ao Grammy 2020 nas categorias “Best Contemporary Instrumental Album” e “Best New Age Album”), de Trent Reznor e Atticus Ross (integrantes da banda Nine Inch Nails e vencedores do Oscar 2011 de “Melhor Trilha Sonora Original”).
É inegável a representatividade imersa em Soul. Além de apresentar seu primeiro protagonista negro em uma animação, o estúdio cuidou para que cada detalhe dessa temática fosse inserido de forma cuidadosa e detalhista. Prova disso, temos a cena chave da barbearia, a qual deve ter passado despercebido por muitos que assistiram.
Em um momento do filme, Joe precisa dar aquele tapinha no visual e vai até o barbeiro para isso. Na comunidade afro-americana, esses locais são sempre muito característicos e carregados em referências, e nesta cena há todo um cuidado para refletir exatamente isso. O codiretor da animação, Kemp Powers explicou, em um episódio da série ‘Por Dentro da Pixar’ (01×01 – disponível no Disney+), a história por trás dela. Powers, originalmente chamado apenas para fazer anotações no roteiro, foi convidado por Pete e Dana Murray para co-dirigir e depois de análises, decidiu que o protagonista precisava passar por uma “experiência totalmente preta” e daí surgiu o momento estético. Outra curiosidade é que o nome do barbeiro (Dez), é uma homenagem a um amigo de infância de Powers.
Desde a textura dos cabelos, o manuseio de tesoura e máquina, figurino (até do pé), personagens envolvidos e a ambientação, tudo foi pensado para que remetesse da forma mais fiel possível a um ambiente originalmente negro. E que belo resultado! Além disso, outros detalhes transformam Soul em uma ótima peça e reforçam seu cuidado com a representatividade. Bradford Young (Selma e de When They See Us), diretor de fotografia do filme, é especialista em iluminação de pele negra, e com certeza fez toda a diferença na construção visual dos personagens, acentuando muitos tipos de corpos diferentes do elenco.
Soul e a pandemia: uma escolha que trás perdas e ganhos para o público
Soul estreou no dia 25 de dezembro de 2020, na Disney+, e é válido dizer que pela força da animação, as questões levantadas e principalmente o fato do filme girar em torno de um protagonista negro, esta escolha é um pouco triste, já que a representatividade nas telas se faz cada dia mais necessária. Não há como não pensar nos muitos sem acesso ao serviço, que poderiam se beneficiar e se ver nesta história se ela tivesse ido às telas de cinema. Contudo, é perfeitamente compreensível no olhar empresarial a escolha da Disney, dado o momento de pandemia.
Aliás, é justamente por este momento, que Soul parece ainda mais forte e que sua mensagem mexe conosco de uma forma muito mais realista, afinal, a lição desta animação é mostrar que nossa vinda à Terra não tem nenhum propósito ou missão maior do que o de VIVER A VIDA e aproveitá-la ao máximo.
Independente da busca por objetivos e grandes sonhos, o que importa mesmo é o clichê positivo de “aproveitar a jornada em busca do final”. Soul é tocante e sensível no que precisa ser, com uma boa dose de humor universal e personagens extremamente carismáticos, além é claro, de trazer à tona inúmeros detalhes referenciais que se fazem cada vez mais importantes para as grandes massas.
É impossível assistir o filme e não refletir sobre algum aspecto da própria vida. Soul é além de tudo, ambicioso no que se propõe: a ideia de ressignificar o viver e o morrer, propondo de maneira quase filosófica, uma explicação para o nascimento, sonhos, sentimentos, traços de personalidade e tudo o que nos torna humanos.