Quem já é acostumado ao conceito de efeito borboleta, tem na ponta da língua a frase de que “o bater de asas de uma borboleta no Japão pode ocasionar um tufão nos Estados Unidos”. O termo faz parte daquilo que é chamado de Teoria do Caos, que determina que mínimas mudanças no início de um evento podem gerar profundas alterações futuras.
No próprio rap há vários exemplos de como isso acontece. Straight Outta Compton do N.W.A, The Miseducation of Lauryn Hill da Ms. Lauryn Hill e My Beautiful Dark Twisted Fantasy de Kanye West são alguns nomes que vem à mente quando o assunto é game changing na indústria. E hoje, dado o gigantismo e a representatividade de Kendrick Lamar, podemos considerar To Pimp a Butterfly como essa nova era, tanto para o gênero como para K-dot.
Inicialmente, o álbum se chamaria Tu Pimp a Caterpillar, um acrônimo para 2pac, grande influência do rapper de Compton. Mas, o próprio Kendrick revelou, em entrevista à MTV, que a decisão de trocar a lagarta pela borboleta foi justamente para demonstrar essa evolução. Nesse terceiro álbum, Kendrick já havia abandonado seu pseudônimo usado para soltar suas mixtapes no início do século e também já vivia da fama de sua recente carreira.
Por isso, o álbum reflete a dualidade do que é um homem negro americano estar nos holofotes, sobre ter que viver constantemente entre o deslumbre da luzes que o cega e também o fato de ele agora ser um alvo ainda mais nítido. Para conseguir transmutar tal sensação Kendrick não mede esforços para realçar a negritude do disco.
Um perfeito exemplo disso é “Wesley’s Theory”, talvez a melhor faixa de abertura de toda sua carreira. Aqui, além de usar um sample de “Every Nigger is a Star” de Boris Gandier – faixa pensada para enaltecer o povo negro e dar outro significado ao termo pejorativo – Kendrick se debruça sobre a fama de Wesley Snipes no final dos anos 90 para decorrer sobre como o estrelato é uma faca de dois gumes ainda mais afiada para os negros. Além disso, a faixa também tem a participação do lendário baixista Thundercat, que o rapper usa como arma secreta para transicionar entre gêneros e criar uma atmosfera única e até hoje não replicada no rap.
Apesar de To Pimp a Butterfly ser hoje considerado uma obra prima do rap, ele poderia facilmente ter a mesma alcunha em outros gêneros. A maneira com que Kendrick incorpora o jazz, R&B e soul o permite fazer do álbum uma jornada totalmente experimental, onde a instrumentação cria uma bolha que tira o ouvinte do mundo externo para focar somente na lírica do rapper, que faz questão de demolir nossa concepção desse mundo.
A caneta de Kendrick descarrega todo seu pente e metralha a forma como a sociedade absorveu conceitos da cultura negra. É nessa questão que, 10 anos antes, Kendrick demonstra o porquê do antagonismo com seu agora arquirrival canadense: se Drake se apropria de uma cultura e estilo que não é dele para manter uma postura, Kendrick, ainda em 2015, já a reivindicava, pois viveu as chagas que era pertencer à ela.
A sequência de acertos de Kendrick é quase que interminável em toda sua discografia, indo de “Money Trees” até a recente “Not Like Us”, mas a forma com que o rapper consegue condensar suas principais astúcias com To Pimp a Butterfly, talvez nem ele mesmo – com todos seus —méritos consiga repetir novamente. Em um álbum sem skips, onde até os interlúdios são irresistíveis, é difícil escolher momentos de destaque quando tudo está no auge, mas alguns pontos se sobressaem como “These Walls”, “Alright” e claro, “King Kunta” – faixa que usa do famoso personagem da literatura americana para Kendrick se colocar no topo.
Há 10 anos, To Pimp a Butterfly abalou a cena americana com seu lançamento, desafiando audaciosamente os conceitos estabelecidos de uma indústria que clamava por novos caminhos. Kendrick Lamar não apenas adaptou a maneira de fazer rap, mas também a forma de interpretá-lo. Ele desconstrói a teoria ao seu modo, trazendo o caos que já permeia sua vida e, ao amplificá-lo, cria uma obra-prima que até hoje influencia os rumos do gênero.