Crítica | Jessie Ware, “What’s Your Pleasure?”

Existe aquele tipo de artista que quase ninguém fica muito ansioso por um lançamento, mas não por um motivo ruim, e sim pela segurança de que um bom trabalho vai vir em breve. Pode parecer indiferença, mas em um momento que cada pequeno anúncio vem acompanhado de diversos teasers e campanhas massivas em redes sociais, é sempre bom ser surpreendido de uma maneira mais calma. A espera pelo novo álbum de Jessie Ware já acontecia desde 2019, e mesmo tendo seu lançamento mais de um ano depois, parece que foi ontem que tivemos o primeiro gosto do disco com ‘’Adore You’’.

Não é fácil classificar uma sonoridade fixa para a cantora, mas também não é algo tão complexo. Se fizermos uma maratona musical de seus quatro discos, é notável perceber um crescendo pessoal em temas e analisar o foco de cada trabalho. Ware é uma amante do amor, e isso transparece em cada um dos seus álbuns. O termo ‘cantora romântica’ por mais brega que soe, pode muito bem ser usado para defini-la, e os vocais suaves tem grande parte de culpa nisso.

A maior diferença na produção de What’s Your Pleasure? é a participação de poucas pessoas. Seu disco anterior, ‘Glasshouse’ de 2017, contava com mais de dez produtores diferentes… O que não chegou a ser um problema, mas claramente pela cantora saber controlar o que quer. Independente do resultado, é fácil ficar um pouco confuso com tantos toques diferentes em um único trabalho, já que o ligamento de coesão vinha apenas da artista. Agora, é James Ford o produtor responsável por trazer continuidade entre as faixas, e essa parceria é algo que poderia durar para sempre.

A sofisticação da cantora é completamente incorporada no seu som, e agora Jessie Ware não só aparenta, mas também soa preponderante.

É impossível descrever Jessie Ware sem utilizar a palavra ‘sofisticada’. Principalmente quando falamos sobre seu disco atual, onde uma capa simples tende a desviar a atenção do olhar para o colar Alighieri de bronze banhado a ouro. A cantora sempre teve um apelo visual rico, no sentido material da palavra… Ware parece uma magnata, e essa estética é constante desde seu primeiro lançamento, o álbum ‘Devotion’ de 2012. Se em trabalhos anteriores poderíamos nos imaginar em celebrações da alta classe na ilha de Maiorca, aqui ela nos transporta para uma festa ou pista de dança em que a visão de trajes requintados estaria em sintonia com o olfato, em um salão que exalaria safiras e rubis.

Abrir um disco com uma faixa de cinco minutos é algo corajoso na época dos streamings, mas o desenvolvimento mais difícil é segurar a extensão de uma faixa deste tamanho, de forma que sirva como um longo convite ao resto do trabalho. “Spotlight” não só faz isso de forma envolvente, como é a definição de uma faixa ‘abre-festas’… Ouvi-lá é imaginar um anfitrião acomodando seus convidados enquanto prepara Sazeracs e Manhattans para os recém-chegados. 

O primeiro choque de que estamos lidando com algo extraordinário vem na sequência, a faixa-título “What’s Your Pleasure?”, é um incessante questionamento dominante, como se desafiando quem ouve a dizer e assumir que isso que toca é exatamente o que se quer, e o que se precisa. A cantora diz que sabe fazer alguém feliz e que vê um potencial, e ainda sobre a afirmação de uma simetria perfeita ela manda completamente na relação. Quando é perceptível para onde ela direciona essa atração, já é tarde demais… a música acaba e a semente da dúvida já foi plantada. Ela tem mesmo este poder? sim, ela tem. E para que se saiba exatamente o que ela pode fazer, é preciso mergulhar mais a fundo nesta pista de dança sensual.  

Fazer um disco que sirva de trilha sonora sexual pode ser uma armadilha, mas “What’s Your Pleasure?” vai além e embarca na dicotomia entre dominação e submissão.

O controle sobre o ouvinte é um fator predominante, onde uma estrada imaginária é criada, e nela percorremos todos os locais possíveis onde podemos dançar e absorver a obsessão que a cantora tem em pavimentar o exato caminho que devemos seguir. A passivo-agressividade emocional é imposta sempre que possível, desde quando ela decide quantas vezes podemos ama-la em “Ooh La La”, até na ousadia de deixar óbvio o quanto queremos ser controlados em “Soul Control”.

Aos poucos fica óbvio o quanto o disco foi criado com a intenção de servir de trilha sonora para encontros amorosos. Mas Ware deixa bem claro que os intuitos não são leves, “What’s Your Pleasure?” foi feito para transar ouvindo mesmo, em uma conversa com Róisín Murphy para a Interview Magazine ela fala sobre suas intenções;

Eu quero que haja um elemento de escapismo e fantasia, e era isso que eu estava escrevendo quando estava fazendo o disco. Eu queria que isso me levasse para longe, para um local e uma situação imaginária, o que acho que muitas pessoas podem se identificar agora. Eu quero que as pessoas se sintam sensuais, eu quero que elas queiram fazer sexo, mesmo que elas não possam no momento.

Em “Save a Kiss” é onde a Jessie dominante decide que ela também tem desejos a serem entendidos. O pedido quase que em forma de súplica para que se guarde a forma mais sincera de amor é o momento de desespero da amante… Depois de prover e seduzir tanto, é hora da cantora provar que ela também tem necessidades amorosas. A evolução de como ela canta sobre isso e depois passa para a revelação mais vulnerável em “Adore You”, é a progressão de como ela mostra que também precisa dizer o que sente.

Não tem graça que essa relação seja unilateral sobre o quanto alguém é enfeitiçado. É preciso deixar claro que existe um sentimento mútuo, que ela quer que seja público, como quando canta que (alguém) ‘pode contar para todo mundo’ sobre essa adoração.

Momentos mais leves são a prova de que pista de dança também serve para recuperar a energia.

Depois de uma sequência de tirar o folego, é em “In Your Eyes” que temos um momento de calmaria. Se um script estivesse sendo seguido, aqui seria o momento de relaxamento pós-coito, isso porque o clima noir da faixa ajuda a música a criar um cenário envolvendo pole dance, a famosa luz bissexual e dessa vez algo mais leve do que os drinks sugeridos na entrada do disco… Algo como um Dry Martini.

O retorno a ‘festa’ acontece logo em “Step Into My Life”, a música é uma das que melhor reflete a pegada nu-disco do álbum, a letra demonstra um avanço nos sentimentos, parece que por um momento o jogo de sedução teve uma pausa, para que agora tudo fosse aproveitado de forma mais leve.

Em “Read My Lips” a sonoridade mescla entre Prince e Janelle Monáe, mas sem perder a personalidade. Algo que pode gerar uma dúvida em “Mirage (Don’t Stop)”, por esta ser a única música com elementos de uma já existente, ‘Cruel Summer’, do grupo Bananarama. Mas logo nos primeiros momentos é fácil se perder entre o que é original e o que foi adaptado. James Ford sabe muito bem conduzir a produção de modo a parecer que tudo que ouvimos acabou de ser criado por ele.

O toque sombrio inicial de “The Kill” já pode transportar o ouvinte cinéfilo para a maravilhosa trilha sonora do filme neo-noir ‘The Guest’, imaginando a cantora no maior momento de indecisão sobre como é estar e se doar para outra pessoa. O questionamento sobre a bipolaridade amorosa reverbera até o fim, e analisando pelo fator romântico é o som que dita uma relação fracassada, mas que ainda possuí um elo tão forte que é praticamente impossível qualquer saída que não seja algo tão forte quanto a morte.

E a última, “Remember Where You Are” encaixa perfeitamente como o final de um filme romântico, assim como o fim de uma festa que vai até o amanhecer. O clima de despedida canta sobre deixar que aquela relação persevere na memória dos envolvidos, é onde todo o jogo de sedução termina, não há mais o que ser feito e também não é necessário. Tudo já foi sentido e dito.

Com o fantástico “What’s Your Pleasure?”, Jessie Ware cria um labirinto de nu-disco em que a vontade é nunca encontrar a saída.

Jessie Ware nunca teve trabalhos ruins, a cantora sempre demonstrou maturidade na carreira e capricha em fazer discos de qualidade, mas aqui fica claro o quanto ela sempre evolui a cada lançamento. A forma como ela se inspira na vida pessoal para trazer algo para todos é a prova do quanto ela se faz acessível sem perder sua personalidade, cada disco parece feito como se fosse o primeiro e o último, para que experiência de ouvi-lo se torne algo caloroso.

Em um momento em que música é uma das melhores formas de escapismo, “What’s Your Pleasure?” foi criado como um labirinto de nu-disco em que a vontade é nunca encontrar a saída. Cada música tem seu pertencimento e nada soa fora do lugar. Neste momento, não há outro trabalho que cause tantas possibilidades de fantasias imaginárias como aqui, cada faixa parece trazer seu próprio roteiro para que o ouvinte se transporte para locais e momentos únicos.

Um grande trunfo do álbum é ele não ser viciante, o que a primeira impressão pode parecer algo ruim, mas não é. Ele é o tipo de entretenimento que em vez de ser rapidamente aproveitado pelo período de alguns meses, será aproveitado muitas vezes em um período de muitos anos. O título do projeto é a pergunta que podemos responder ao fim da primeira ouvida. A relação de amor entre a cantora e quem a houve é recíproca, então o prazer do ouvinte é Jessie Ware, e o dela somos nós.

Nota do autor:
93/100

Ouça “What’s Your Pleasure?” da Jessie Ware:
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