A trama por trás da versão cinematográfica para “Wicked” daria um filme por si só. Foram anos de pré-produção, audições intermináveis, promessas e até a substituição de sua produção e lançamento para dar lugar ao terrível “Cats”, de 2019. Se as conversas sobre o filme rolam desde 2013, até Lady Gaga no lugar de Elphaba e Shawn Mendes como Fiyero foram cogitados. Agora, o resultado é bem diferente.
Se um dos primeiros teasers do filme apelidava o longa de “a passion project” (‘um projeto passional’, em tradução livre), o que assistimos agora no cinema traduz bem essa ideia. Com orçamento gigantesco, atenção aos detalhes, easter-eggs de “O Mágico de Oz” e da versão de palco do musical e até um certo fã-service digno dos filmes de super-heróis, a Parte 1 de Wicked veio arrebatadora como a espera fez merecer.
Com Ariana Grande interpretando a afetada e mimada Glinda, “a bruxa boa”, e Cynthia Erivo como Elphaba, “a bruxa má do Oeste”, o elenco segue redondo com Michelle Yeoh como Madame Morrible, Jeff Goldblum como O Mágico e Jonathan Beiley como o charmoso Fiyero. Jeff entrega um mágico carismático e humano, Jonathan nos faz querer muito mais de seu delicioso Fiyero, Michelle Yeoh traz perfeitamente a curva de caráter de sua personagem e assume seu poder com propriedade (mesmo que os vocais em sua pequena participação musical não sejam tão satisfatórios). Sobre Ariana e Cynthia, há muito a dizer.
Se Glinda era o papel dos sonhos de Grande, na tela vemos a personagem perfeita e bem interpretada de alguém que sonhou com aquilo mas foi além. Com estudo e domínio total de todas as viradas emocionais e narrativas da personagem, Ariana entrega muito mais que os vocais deliciosos que já esperávamos. O tempo cômico da atriz surpreende os mais céticos, mas serve como um banquete para todos entregues ao filme. Suas escolhas vocais emocionam, divertem e trazem ainda mais profundidade para uma personagem que, há 20 anos, é apresentada de forma caricata — em Ariana, Glinda encontra um lado muito mais humano e nuances sentimentais que roubam a cena.
Já para a Elphaba de Erivo, sobram os aplausos e uma boa dose de encantamento. Se a atriz é a próxima candidata a ser a mais jovem EGOT — sigla para pessoa que conquista os principais prêmios do entretenimento: Emmy, Grammy, Oscar e Tony —, já tendo sido agraciada com três deles, em Wicked percebemos ainda mais do seu poder. A escalação de uma atriz negra para interpretar a personagem eleva a trama de Elphaba, e essa escolha somada ao talento da atriz e novas adições narrativas trazem a bruxa verde para o nosso mundo: suas dores mais reais e vulneráveis, seu arco dramático mais emocionante e sua jornada ainda mais magnética.
Vocalmente, Cynthia traz a doçura, os sonhos e as dores de Elphaba de forma quase inédita, fazendo com que cada uma de suas cenas seja complexa e imperdível. Relembrando uma polêmica recente em que um fã recriou um pôster e a atriz reagiu, dizendo que “sem as palavras, comunicamos com os olhos”, vendo o filme entendemos um pouco mais o ponto da atriz. Cynthia traz um magnetismo com suas expressões visuais: os olhos dizem o que muitas vezes o diálogo não dá conta. A dor, o perdão, a surpresa, a frustração: está tudo ali, mesmo que muitas vezes brilhando sob as sombras do chapéu.
A direção de Jon M. Chu é acertada em tudo: desde as cenas de ação que prendem a atenção e o fôlego da audiência até os momentos mais simples, intimistas ou afetuosos. Tudo no filme parece conter a paixão prometida no projeto. As coreografias são satisfatórias — e tem sido até virais —, os figurinos de Paul Tazewell deslumbrantes e os cenários, por mais grandiosos, cumprem o papel de existir para potencializar as narrativas e atuações. A cinematografia, no entanto, levantou polêmica nas redes sociais antes mesmo de ser vista nas telonas. As críticas às cores e as luzes são, em partes, pertinentes. Por mais que o filme tenha cenários grandiosos e, por isso, tente imitar a luz do dia em sua abundância, o flare presente e a tonalidade dourada em alguns momentos artificializa as cenas, e trazem o tal ar de CGI, quase agindo contra o uso de tantos elementos práticos e reais.
A duração de 2h40 é bem justificada no roteiro amarrado e numa adaptação que não corta nada da história já consagrada — pelo contrário, traz alguns novos elementos e personagens que deixam a trama melhor acentada. Qualquer coisa que reduzisse a duração entregaria um demérito para a adaptação, que agrada os fãs enquanto dá ao novo público o suficiente para se inserir e se apaixonar pelo universo.
Quanto à versão dublada por Myra Ruiz e Fabi Bang (atrizes que interpretaram Glinda e Elphaba nos palcos de duas montagens aclamadas e consagradas no Brasil), também há o que se dizer. Por um lado, o ensamble da versão brasileira é consideravelmente mais fraco que a versão original. A impressão é de que há menos vozes entoando as canções clássicas, mesmo que em cena se veja entre 12 ou 15 pessoas. Mesmo com essa diferença perceptível, é louvável outro esforço da Universal Pictures, que traduziu praticamente todos os textos que vemos nos filmes: de cartas escritas à mão até a lombada dos livros de estudos, a adaptação para o nosso idioma é carinhoso e caprichoso — adjetivos que podemos também usar para falar da dublagem de Fabi Bang, como Glinda.
Possivelmente a personagem que mais se beneficiou da dublagem nacional, a Glinda de Fabi conseguiu trazer com ela uma piada dos palcos, alguns momentos mais “cantarolados” que contribuem para a construção brasileira da personagem e a potência vocal de Fabi, que chega em todas as notas altas de Ariana. Já Myra fica um pouco às sombras de Cynthia — o que não chega a ser um demérito considerando a potência e personalidade da atriz original impressas na atuação. Mesmo assim, para quem conheceu a história nos palcos de São Paulo, a escolha das atrizes vem como um presente que honra o legado do musical no Brasil. O mesmo feito aconteceu em países como México e Alemanha, levando as versões já conhecidas — e consagradas — pelo público, para as telonas.
“Wicked – Parte 1″ é um acerto impressionante e um indicador forte para a indústria, que vem sofrendo com musicais de pouco impacto e pouca adesão do público. Com um elenco potente, um diretor apaixonado e um orçamento satisfatório, é possível levar musicais para as telas e honrar suas histórias, seus fãs e suas bilheterias. Ver “Wicked” nas telas é mais que um passatempo divertido. É emocionante, cativante, relacionável e profundo, um presente para os fãs da história mas também para os apaixonados por música e por boas atuações. Está tudo ali — inclusive a antecipação bem construída pela Parte 2.