Estava me preparando para redigir a review de “Blue” de maneira impessoal, em terceira pessoa, quando me deparei com o seguinte tweet:
“Quando foi a primeira vez que você ouviu ‘Blue’?”. Essa pergunta me levou de volta a julho de 2019, quando sentei-me na beira da Praia do Foguete, na cidade fluminense de Cabo Frio, no frio, sozinha, à noite, e cliquei em um disco que estava há tempos baixado em meu celular. Um comentário da banda Greta Van Fleet sobre o álbum me despertou uma imensa vontade de contemplar aquele trabalho, com uma capa igualmente dolorosa e serena. Lembrar dessa memória fez com que fosse impossível revisitar o quarto disco da cantora canadense sem narrar minha experiência pessoal com um dos álbuns mais belos da história da música (considerado pela revista Rolling Stone como o terceiro melhor disco de todos os tempos).
Logo quando cheguei à cidade para passar alguns dias com minha família, encontrei uma camiseta azul em uma das gavetas do apartamento que havíamos alugado. Decidi vesti-la por um dia de passeio – lavaria a camisa na volta e a colocaria de volta à gaveta, onde tornaria a ficar solitária. Passeei com meus pais e meus irmãos, vimos um pôr do sol estonteante, e fiquei o dia inteiro com a camisa em meu corpo. Na volta para o apartamento, o longo tempo de espera por algumas pizzas me despertou uma vontade imensa de caminhar pela praia.
Desde pequena sou fascinada pela ideia de nadar no mar à noite, embora a escuridão e as temperaturas amenas sempre tenham me desanimado (e, de certa forma, implicado comigo, insistindo que eu entrasse, mesmo sabendo que eu não seria capaz de me vencer naquelas situações). O vazio da orla também se mostrava um fator hesitante para o encontro dos meus pés com a água. Ninguém gosta de lugares ermos. Apesar disso, contentei-me com a areia fria.
Foi ali, na areia da Praia do Foguete, em uma noite de ventos escandalosos, que a minha solidão foi dissipada com um play. Quando “All I Want”, primeira faixa de “Blue” começou a tocar, senti-me em uma conexão direta com Joni Mitchell. Era como se a própria cantora estivesse ali, sentada ao meu lado, junto ao azul do mar, do céu, do frio, dos ventos e da minha camisa temporariamente furtada para me contar suas histórias de amor. E que contadora de histórias é Joni! Fiquei tão entretida com as faixas que se sucederam que mal pude perceber o tempo passar, mal me importei com o perigo de estar sozinha à noite em uma praia e com as pizzas que chegariam em breve.
Fiquei completamente hipnotizada pela voz de Mitchell, que além de cantar em um belíssimo timbre acompanhante de afinações alternativas no violão, confessava causos em palavras bonitas e simples. Ainda fico hipnotizada sempre que escuto “Blue”, como se cada vez fosse a primeira. Mesmo sabendo tudo que está por vir, cada reprodução do disco é uma nova visita à minha solitude na praia. Aquele estado não me incomodou; sua memória é como um abraço que dou em mim mesma quando preciso reencontrar meu self, meu id. As histórias de Joni, embora tenham pouco a ver com as minhas, encontram meus caminhos como se fosse eu a vivenciar tudo o que é cantado em suas canções – talvez pela sensibilidade exacerbada, pela coragem em abrir um coração tão carregado, que as emoções de Joni se tornam as do próprio ouvinte.
A presença da natureza é notável em todas as faixas de “Blue” – principalmente as constelações, como em “Case of You”. Analisando as estrelas do disco, lançado em 22 de junho de 1971, ficamos frente a Sol, Lua e Mercúrio situados em Câncer. Para os leigos em astrologia, isso significa emoção, doação, sensibilidade, proteção, lar. “Blue” não poderia ter sido lançado em uma data diferente: sua vinda ao mundo só poderia ter sido orquestrada pelos astros, pelo divino. O mais novo cinquentão do mundo da música é o mais próximo do nirvana que se consegue ver em vida. Um fato curioso é que, na faixa “Little Green”, Joni diz ter nascido quando a lua estava em Câncer. A coincidência com a posição do astro que rege as emoções permite a indagação intencional de quem é o verdadeiro eu-lírico da canção: Joni ou o próprio “Blue”?
Mesmo sem entrar no mar, naquela noite me senti em unidade com as ondas, com as estrelas do céu e do mar. Ainda me sinto assim algum tempo depois, e talvez seja por isso que recorro ao “Blue” quando preciso encostar em meus sentimentos, arrumar os cômodos da minha alma, sentir-me em casa como a canadense canta em “California”. Ou então beber uma caixa de vinho e continuar estável em meus pés, à la “Case of You”. Como em “All I Want”, rasgar minhas meias calças em um jukebox antes de dançar com meu garoto, e seguindo os passos de “My Old Man”, dispensar pedaços de papel da prefeitura.
“Blue” não é diferente dos demais álbuns de Joni, com suas histórias maravilhosamente contadas, forças naturais atuando em cada faixa e cordas e teclas as adornando com beleza e simplicidade. Ainda assim, são dois términos de namoro dolorosos e uma viagem de desapego à Europa que fazem desse disco o holofote da carreira de Mitchell.
Depois da minha experiência inefável na areia da praia, voltei para o apartamento e comi pizzas. Eu estava completamente mudada, inundada pelas lágrimas que não chorei ao longo da minha primeira escuta íntima do disco. Aquela noite me persegue como o momento em que tive meu primeiro contato com minha maturidade emocional. Cada escuta me lembra de ser fiel ao que sinto, como se Joni Mitchell fosse me embalar como uma rede de segurança no caso de algum infortúnio.
***
Em comemoração aos cinquenta anos de sua obra prima, a cantora lançou um EP comemorativo de cinco faixas, nas quais podem ser conferidas demos, versões alternativas e lados B. O lançamento é a primeira parte de um projeto de divulgação dos arquivos de Mitchell, previsto para sair em outubro deste ano.