Há cerca de dez anos, Beyoncé e inovação têm caminhado lado a lado. Desde o período entre os álbuns ‘4′ e ‘Beyoncé‘, não se pode negar que a cantora não é levada a um estúdio senão para dar um passo adiante, para ser surpreendente ou para embarcar em uma jornada de autoconhecimento musical. Mesmo com uma carreira invejável, onde até as polêmicas mais fortes não causam qualquer incômodo em uma personalidade que adquiriu um escudo de autodefesa e privacidade, a artista ainda sente que deve-se ouvir mais e que o que já foi feito ainda não é suficiente para revelar todas as camadas da pessoa que ela é.
A cada novo projeto, Beyoncé tem transformado as datas de lançamento de seus discos em eventos; não existe mais apenas a sexta-feira em que alguém coloca fones de ouvido para se atualizar com todas as novas músicas. O que existe agora é “estamos na semana do novo álbum da Beyoncé“, e qualquer outro lançamento é eclipsado de uma maneira esperada que não afeta mais de forma negativa, pelo contrário… Por que não ficar feliz em saber que se lançou algo novo no dia de uma das maiores artistas não só do momento, mas de todos os tempos.
Após um impacto profundo com “Renaissance“, álbum que a fez resgatar sonoridades e se provar também como uma potência na música eletrônica, o que mais poderia ser feito por Beyoncé?Naturalmente e genericamente categorizada como uma artista do pop e R&B, dois gêneros (mesmo que contendo um leque tão extenso no que diz respeito a sonoridades e direções) ainda não eram o suficiente para definir a cantora nascida na cidade de Houston, no estado do Texas. Beyoncé nunca tentou se colocar como educadora musical de uma nação e de seus próprios fãs, mas fez questão de cravar suas ideias com firmeza.
Quando em ‘LEMONADE‘ houve a grande virada de chave para a maioria do público que nunca havia parado para pensar em quem ela é e como se sente sendo mulher e negra, a cantora manteve o pé no chão e foi além disso… fincou raízes tão fortes que fez com que todos percebessem que a partir daquele momento, mais do que nunca, não existiria apenas uma cantora que pensa primeiro em como suas músicas soariam para os outros. Em primeiro lugar, viria ela, sua história, o caminho que percorreu e como tudo isso seria narrado até então.
‘COWBOY CARTER’ foi encarado como uma promessa tão forte quanto arriscada ao se tratar de um álbum de música country. Entrar em uma discussão sobre o poder dessa sonoridade nos Estados Unidos, e principalmente sobre estudos que comprovam ligações enraizadas a pessoas negras, é um assunto extenso, e o que ela faz nesse disco é provocar de forma natural. Logo no anúncio do álbum, a cantora deixou claro qual o gênero do som que estaria por vir, em uma frase que à primeira vista parecia algo divertido, mas que quando lida novamente, faria qualquer um perceber que ela não estava brincando. ‘COWBOY CARTER’ não tem pretensão de ser um álbum country, e sim um álbum de Beyoncé.
Trazendo uma experiência bastante longa, repleta de interlúdios, pequenos e estratégicos samples aqui e ali, colaborações surpreendentes e até covers, a cantora utiliza sua imagem e voz para ecoar outras também. Beyoncé nunca foi introspectiva em sua música; ela é exagerada, performática, de tirar o fôlego, e tal magnitude também necessita de alguns amparos. Mesmo que o fato da artista sempre ter créditos bastante extensos em seus discos tenha se tornado um argumento cafajeste para questionar seu envolvimento em seus próprios projetos, ela ainda faz questão de trabalhar com muitas pessoas.
Esse padrão coletivo também serve como uma rede de proteção, como se Beyoncé estivesse no meio de um lugar deserto podendo correr e aproveitar qualquer metro quadrado que pisar, mas sabendo que ao seu redor há pessoas que podem sugerir rumos, cabendo a ela caminhar em sua direção, mas também sabendo que tem todo o direito de pisar no campo dos outros quando quiser.
Dessa vez, não há tanta aposta em como cada música se encaixa na sequência; é possível imaginar estações de rádio sendo trocadas ou anúncios que parecem cortar o clímax, mas os interlúdios se colocam como algo necessário para engajar. Ouvir a voz doce e quase sedativa em ‘FLAMENCO’, para logo depois se pegar batendo palmas ou buscando qualquer coisa, seja um objeto ou parte do corpo, para acompanhar a batida de ‘YA YA’, é uma das melhores sensações que o álbum provoca. Logo no lançamento de ‘TEXAS HOLD ‘EM’, é preciso lembrar que a faixa veio acompanhada de ‘16 CARRIAGES’; essa, que é uma das músicas mais bonitas, acaba perdendo bastante força quando se ouve o projeto completo. Há simplicidade tanto na produção quanto nos vocais, e ter acostumado seu público a impressões extravagantes pode ter resultado em reações mais contidas quando ela mostra que também pode ter momentos sonoramente mais acessíveis.
‘II MOST WANTED’ tem um dos refrãos mais marcantes de todas as vinte e sete faixas, mas admirar sua estrutura achando que a participação de Miley Cyrus foi tão importante assim é exagero. A cantora tem uma harmonia surpreendente com Beyoncé, mas caso outra pessoa estivesse ali, o efeito seria o mesmo, para o bem ou para o mal. Tendo uma das melhores aberturas de sua discografia com ‘AMERIICAN REQUIEM’, a impressão inicial é que o projeto será mais voltado a um som clássico ou culto, mas mesmo que essa funcione devido a uma produção rica combinada com uma letra arrebatadora, é preciso entender que caso tudo fosse feito apenas de faixas assim, o resultado não seria nada agradável.
Curiosamente, os melhores momentos são quando ‘COWBOY CARTER‘ brinca com a criatividade, saindo de sonoridades não tão surpreendentes. ‘SPAGHETTII’ e ‘TYRANT’ parecem pedir um momento juntas em uma futura turnê, e ‘SWEET ★ HONEY ★ BUCKIIN‘ poderia facilmente estar presente em um projeto de Janelle Monáe ou Victoria Monet, por exemplo, de tão bem executada. Entre todo o conteúdo, as melhores participações são representadas por Shaboozey e Dolly Parton. Post Malone aparece em ‘LEVII’S JEANS‘, mas o cantor acaba ficando com o fardo de pertencer à música menos imponente do disco.
‘COWBOY CARTER‘ é uma forma completamente particular para a cantora brincar com sua visão para a música country, fazendo questão de ir além apenas de algumas batidas adicionais nas produções. A cantora teve referências, objetivos e situações pessoais que a fizeram estar cada vez mais ligada a um gênero tão norte-americano, grandioso e conservador. Esperar qualquer tipo de atitude agressiva seria algo bobo, pois ela não precisa apelar e se colocar em uma posição de artista incompreendida ou transformar todo o foco do projeto em uma carta aberta à indústria musical.
Ela escreve coisas que observa e vive, assim como qualquer artista quando faz algo pessoal, mas também deixa claro que tem todo o direito de fazer o que quiser a qualquer momento. Se há alguns anos seria risível imaginar que ela poderia criar uma pista de house music no palco, e ela o fez de forma esplêndida. E se alguém pensou que seria chocante ouvi-la acompanhada de banjos, agora é a hora de perceber que não há nenhum tipo de limite para Beyoncé, pois em vez de escolher um gênero para experimentar, ela decidiu pelo caminho mais arriscado, mas que também é o mais prazeroso: experimentar consigo mesma.