Rosalía faz do “LUX” um manifesto sagrado de onipotência

Novo disco de Rosalía é um delírio sacro sobre o som como matéria divina

Uma das situações mais onipotentes em que um artista pode se colocar é a chance de fazer diferente na próxima vez. O “daqui a pouco” será sempre uma alternativa: manter-se ou reelaborar. Cabe a ele assumir o risco de mirar noutra invenção, seja ela poderosa ou não. Se avaliarmos a coragem, isso já é mérito. Afinal, vivemos num tempo de consumo que não sente necessidade de sequer tentar acolher o diferente (o mundo, desde que é mundo, talvez sempre tenha sido assim). Há uma anestesia estética atravessando tudo. Quem se atreve a ir contra isso?

Como Rosalía sempre inovou provocando, o planeta ficou mais atento à sua arte após o movimento musical experimentalista que MOTOMAMI desafiou. O que viria depois? Qual seria seu próximo manifesto de onipotência? E, acima de tudo, como ela — apenas fazendo o que sabe fazer de melhor — iria contra essa dormência coletiva? Jogando fora os ritmos que mais vendem agora e as ideias já usadas, que não precisam ser oxigenadas mais uma vez, surge LUX: Rosalía se coloca de novo na posição de risco, indo contra todas as sentenças e rezas que mantêm a indústria de pé.

Talvez a melhor forma de decifrar a estética sacra desse seu projeto mais poderoso seja imaginá-lo como um estudo sobre a experiência espiritual individual. O mais respeitável aqui é perceber como tudo reverbera a ideia de que o som também é matéria divina e, sobretudo, uma linguagem capaz de gerar comunicação e espelhamento em qualquer língua. Dentro dessa estrutura sacra, cada faixa atua como um altar particular. Esses altares fortificam imagens de ecos de fé, inquietação e amor, além da feminilidade, e, acima de tudo, constroem uma ode intensa ao divino.

“Berghain” segue sendo um ponto agudamente alto dentro da lista de músicas. Solta, a canção imprimiu força desde o momento inicial; conectada ao todo, é um baque ainda maior. Contudo, falta aproveitamento para o excepcional Yves Tumor, mas Björk assume um papel de entidade, transformando o espaço sonoro em uma espécie de invocação subjetiva.

Curiosamente, após o single, as faixas de baixo fazem o ouvinte emergir num tipo de transe luxuoso e assustadoramente coeso. Nesse ponto, as canções ganham vida respeitando as técnicas do disco em cada fibra. “De Madrugá” e “Dios Es Un Stalker” são as que mais se afastam dos tons litúrgicos da proposta — felizmente, o resultado segue sendo transcendental. Em seguida, o ouvinte chega em “La Yugular”. A música é a zona de implosão do álbum, o ponto de troca mais intenso de LUX. Sua letra espetacular cria dimensões em que o sagrado desestabiliza as medidas e dissolve o contorno das coisas. A narrativa da canção escala entre o físico e o cósmico num delírio espiritual que irrompe em avalanches sonoras, uma maior que a outra.

Em sua existência, LUX não se descola da ideia de ser incomum por um segundo sequer. Ele causa espanto pela troca de ritmo dentro dos mundos já visitados por Rosalía e, em louvor a essa mudança, gera conforto. Tal operação não é novidade dentro dos registros da artista. Cabe (ou não) ao mundo captar essa ideia — e tá tudo bem se o resultado enxergado for algo difícil demais para se consumir. A própria artista afirmou que, neste projeto, um de seus principais objetivos era fugir da repetição — e assim o fez.

A sensação de não conseguir reconhecer os gêneros do disco e saber que não há nada igual a ele pode causar algum tipo de náusea. Se não abraçado da maneira correta, o álbum pode ser complicado. Porém, não é difícil reconhecer que o projeto é histórico, por inúmeras razões. Com isso em mente, não é possível usar palavras para explicar o que a música exerce sobre o ouvinte que se encontra entregue ao álbum — e nem deveríamos. Mas é nítido dizer que LUX é uma peça como nenhuma outra composta em algum tempo. Todas as linhas o emplacam como um clássico. Nada desta criação celeste montada por Rosalía já foi manipulado por alguém. Imagina poder admirar uma artista como essa? Nós temos sorte.

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