Não existe evento ou notícia boa que superaria o horror causado pela pandemia do coronavírus em 2020, nada pode justificar uma tragédia sob o sentido de: ‘’pelo menos tivemos isso”. O que resta é simplesmente viver em quarentena e tentar ao máximo não chegar o mais próximo de um surto de ansiedade, ou algo do tipo. Algumas pessoas tendem a ficar mais produtivas durante esses momentos, e isso serve para artistas, como é o caso de Charli XCX. Que a moça é criativa e trabalha muito, isso nós já sabemos… mas mesmo uma pessoa como ela ainda causaria desconfiança nos fans, quando anunciou que iria produzir um disco inteiro durante o momento de isolamento social.
O diferencial do projeto seria uma interação com o público, entre sessões assistidas sobre o processo de desenvolvimento da ideia, até lives em que pessoas (aparentemente) podiam ajudar em suas composições e passando pela parte gráfica, com várias submissões de capas para os singles escolhidos. Isso gerou um pouco de controvérsia, principalmente quando afirmaram que Charli não incluía muito a participação das pessoas — trazendo no projeto final batidas de amigos produtores e surpreendendo nos lançamentos com capas que até então ninguém havia visto quem submeteu.
O projeto do álbum sempre foi uma experiência aberta, mas a última palavra era sempre de Charli XCX, assim como deveria ser.
Um exemplo é o processo de escrita da canção ‘anthems’ no instagram; a cantora apenas criava várias rimas e frases enquanto perguntava sobre o que soaria melhor, mas ali ficava claro o óbvio — que a palavra final era dela. E aquilo era apenas um recorte de toda a criação da letra, podendo ser modificada fora das câmeras. O resultado é uma das melhores canções do álbum, e a única com dedo de Danny L Harle, produtor que funciona muito bem com a cantora.
As produções do disco ficaram em sua maioria por conta de A.G. Cook, continuando uma parceria que começou na mixtape ‘Number 1 Angel’. O primeiro single do projeto, assinado por ele, ‘forever’ ganhou um vídeo feito nos moldes do isolamento, caseiro e de baixo orçamento. É impossível exigir qualidade profissional nesse momento, então o esforço aqui conta muito. Assim como ‘claws’, que foi gravado pela própria com ajuda do seu namorado Huck Kwong. As duas músicas foram ótimas escolhas porque podem expressar dois extremos do projeto. E a presença de Dylan Brady do duo 100 Gecs na produção desta última, dá vontade de tê-lo trabalhando com Charli para sempre.
‘c2.0’ é outra produção do mesmo que poderia funcionar até como uma continuação de claws. E a faixa mais esperada foi provavelmente ‘party 4 u’, uma das centenas já conhecidas dos ouvintes e que não faz feio dentro do projeto.
A prova da criatividade de ‘how i’m feeling now’ é um trabalho tão bem executado em circunstâncias limitadas.
Outros dois pontos positivos são a faixa de abertura e a de encerramento, ‘pink diamonds’ e ‘visions’ tem batidas potentes que remetem a uma versão light do outro de ‘Click’. Todas as 11 músicas do disco soam essenciais no projeto, não existe algo que pareça colocado a força ou sem sentido. A partir disso, o questionamento sobre como um artista pode criar um trabalho tão poderoso com recursos limitados é colocado em prática.
Charli XCX nunca foi uma cantora de trabalhos ruins, talvez o menos favorito dos admiradores (Sucker, de 2014) pode ser considerado o mais próximo de um projeto indiferente, mas é notável que a cantora ainda estava definindo o que queria na sua musicalidade. Isso somado ao fato de naquela época ela estar lidando com o sucesso de ‘Boom Clap’, o que talvez lhe fizesse ter sofrido um pouco sobre decisões autorais x sucesso comercial.
A escolha de não lançar uma segunda versão do álbum ‘Charli’ é um acerto. Dessa forma a cantora não se limita a uma sonoridade estabelecida e também não arrasta um projeto que já foi bem aceito. Mas um ponto positivo que temos aqui (e não tínhamos tanto lá) é ‘how i’m feeling now’ funcionar bem melhor como um disco do começo ao fim, o que pode surpreender devido uma produção em circunstâncias limitadas.
A experiência da produção em isolamento provou que a artista não precisa de muito para desenvolver um disco tão competente.
Hoje, seu som majoritariamente pop tem muitas camadas, desde o eletrônico até avant e passando pelo glitch. Então às vezes é um pouco difícil colocar cada álbum em uma casinha diferente, parece que nunca existe encaixe fixo para o que a artista faz. Tudo soa como um grande experimento, e isso que parece ter definido seu som e personalidade. Experimentar é a chave da cantora, e a única coisa que faltava para ela era uma experiência física de como criar de forma limitada, a ponto de se entender sobre seus limites de criatividade.
Se restava qualquer dúvida sobre o quanto Charli XCX pode fazer, esse álbum acaba com isso. São poucos os artistas que podem dizer que fizeram trabalhos tão bons isolados em meio a uma pandemia. E este pode ser o exemplo, de como alguns podem ser tão bons quanto aqueles discos gravados nos estúdios mais modernos. ‘how i’m feeling now’ é um dos melhores e mais divertidos lançamentos do ano, e a melhor expeiência musical que um cantor poderia compartilhar e presentar seu público.
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