Crítica | Lady Gaga, “Chromatica”

Chromatica não vai ficar na história da artista como um álbum modesto, e talvez com o passar dos tempos acabe se tornando o grande favorito da maioria

A única forma de se analisar um disco é ouvindo, e isso é algo óbvio, mas que tende a ser confundido como se fosse o primeiro passo. O pré-contato que temos com um álbum é sua capa, e em muitos casos é aquilo que define se apertar o play vale a pena ou não. Apesar de capas não mais costumarem ser um chamariz tão grande para trabalhos, ela também é um ponto reserva, para que quando bem implantado acabe adicionando muito sobre o que vamos ouvir em seguida.

Para os amantes de exatas, é fácil olhar a capa de Chromatica e logo enxergar um símbolo estilizado, servindo como um asfixiador para o peitoral da cantora, que repousa no fundo rosa neon. Um senoide é uma curva que traz significado a repetição de oscilação. Falando de uma forma mais acessível: ela pode ser a representação de um símbolo para o som. E qual a forma mais fácil de buscar essa representatividade quando ouvimos algum instrumento tocar?

Através da escala cromática. Trazer esse conceito pode ser visto como algo básico, porque fazer com que o ‘som’ seja o primeiro foco de um trabalho musical até soa redundante. Mas se tratando de Lady Gaga, nada nunca será tão comum quanto parece ser. Existem duas formas temporais de analisar o retorno da cantora, a comum e a exigente. A comum só levou dois anos, já que seu último projeto musical foi a trilha sonora do aclamado filme ‘A Star Is Born’. A exigente já engloba a exata sonoridade esperada até por aqueles não tão fanáticos, a Gaga da música pop.

Antes de tentar entender sobre a (quase) obsessão de ter a artista fazendo música popular é preciso entender um pouco da sua artisticidade, e perguntar se o que queremos é apenas uma intérprete de música acessível ou uma criadora, que leva a sério o controle da imagem, ação, som e impacto que pode causar. Hoje, sete anos após o polêmico ‘ARTPOP’, a cantora retorna a sonoridade que mais agrada, mas de forma cautelosa e bem pensada. Se a aceitação será algo semelhante, isso só o tempo dirá… mas para quem gosta de cruzar as barreiras da cantora como uma mera hitmaker e está pronto para mergulhar fundo em suas influências, referências e execução, com certeza vai querer conhecer a fossa das marianas do planeta Chromatica

O apelo estético que transforma conceitos simples em resultados elaborados é o primeiro grande trunfo deste novo projeto.

Deve ser muito difícil para Lady Gaga não sofrer com o turbilhão de ideias que passa em sua mente durante um período de produção, desde o seu primeiro trabalho ela já está acostumada a entregar uma coesão musical, mas sempre havia alguns pontos medianos, e talvez a culpa disso seja de quanto a cantora pode fazer com várias vertentes diferentes. Saber demais, caso o conhecimento não seja dosado, pode acabar criando uma confusão musical. Uma boa alternativa para fugir disso é o filtro da produção, alinhado com o que as composições querem dizer. E se em ‘The Fame’ o produtor RedOne serviu muito bem como fio condutor geral, aqui temos a participação assídua de BloodPop. O produtor, que também participou de ‘Joanne’, prova que pode ser tão versátil quanto a cantora, fazendo com que a parceria seja tudo menos monótona. 

CHROMATICA I

O clima cinemático acontece logo na introdução, dividindo o álbum em três segmentos. Os mini instrumentais oferecem em seu total apenas 2:08 para o ouvinte recuperar o fôlego durante seus 43:00 total de duração. A divisão de faixas entre os três atos foca em que tema é cantado nas canções, em sua maioria falando sobre amor – ou qualquer sentimento semelhante tão forte quanto. Foi começando com esse tema que o primeiro single ‘Stupid Love’ teve sua apresentação. A música é sim um dos maiores focos de força aqui, dizer o contrário é cair na pretensão de elogiar um disco desfavorecendo as escolhas comerciais.

Desde o anúncio da sua capa já estava claro que o visual desta era seria um personagem tão importante quanto sua sonoridade. Trabalhar o som e a estética é algo que Lady Gaga sabe executar muito bem, mas a cantora sabe que não choca mais, e nem tenta fazer isso… ela soube acostumar o público com suas diferenças, transformando isso em seu normal. A decisão de incorporar ‘Alice’ e ‘Free Woman’ na primeira camada do projeto foi o passo correto, já que as mãos das co-produções de Axwell ajudam a familiarizar aqueles que não tem muito intimidade com os milhares de sub-gêneros do dance e eletrônico. 

Em ‘Rain On Me’ surge uma parceria inusitada com Ariana Grande. Apesar de ambas já flertarem com vários estilos musicais, era difícil imaginar o que cantoras de propostas e vocais diferentes poderiam oferecer, mas a surpresa agrada e é uma das maiores provas da versatilidade das duas. A forma como se adaptam em harmonias é um reflexo de suas vidas pessoais, onde ambas já estiveram em momentos onde superar obstáculos e seguir em frente era o necessário a ser feito. O ponto alto da primeira parte está em ‘Fun Tonight’, a escolha de ecoar uma letra sobre momentos de dúvida pessoal e aceitação sobre quando algo não está tão bem, é o que traz proximidade para se identificar com a cantora. Estar no auge da carreira não significa estar 100% feliz, e reconhecer que aquilo que deseja nem sempre pode trazer apenas o melhor de tudo, é um passo de vulnerabilidade que humaniza a estrela.  

Cantar sem medo sobre suas vulnerabilidades é quando Lady Gaga chega mais perto da humanidade artística que a faz ser quem é. 

CHROMATICA II

A melhor transição está na abertura do segundo ato, e é também em ‘911’ que temos outro exemplo de um dos melhores momentos. Quando canta abertamente sobre seus momentos de fraqueza chega a ser desconfortante, já que causa a percepção de que o quanto as melhores músicas são inspiradas em momentos tão sensíveis de sua vida. O primeiro ponto baixo está em ‘Plastic Doll’, que mesmo com a boa intenção de falar sobre ser uma estrela do pop e se manter em caixas, a letra cai num clichê tão básico que poderia facilmente ser cantada por um artista ao nível de Heidi Montag ou Trisha Paytas. 

Desde o anúncio da tracklist, a música mais aguardada era facilmente Sour Candy’, a colaboração com o grupo BLACKPINK era esperada por motivos de marketing, sonoridade e pura curiosidade. O resultado é exatamente o que temos quando experimentamos o tipo de doce, azedo. Sua duração dificulta termos um melhor aproveitamento de cinco vocalistas, e a escolha do sample batido de ‘What They Say’ também não ajuda. O que sobra desta parceria é entender que Lady Gaga (e sua gravadora) estão bem atentas sobre o quão influente grupos de K-Pop são.Durante muito tempo os fans imaginavam teorias sobre o nome do próximo projeto, e foi um desses nomes (que mais tarde era confirmado como título de uma residência) que acabou se tornando uma música também.

‘Enigma’ tem influências claras de vocais de um dos maiores ídolos da cantora, David Bowie. É também uma das produções mais agradáveis e disco-chiq do projeto, que facilmente a transformam em uma das melhores. A canção que segue não se sustenta sozinha, mas ‘Replay’ se beneficia estando na sequência da anterior, e aqui é uma das maiores provas onde entendemos sobre a recomendação da própria Gaga de ouvir o ‘Chromatica’ em modo sequencial, e não no famoso shuffle.

A cada segmento acompanhamos a crescente de amadurecimento em Chromatica, culminando em um final glorificante.

CHROMATICA III

A última abertura de segmento vem com um tom dramático e dançante, proporcionando a melhor e mais surpreendente música de todo o álbum. Um dueto com Elton John em um material inédito era algo que um dia iria acontecer, só não sabíamos quando. Os artistas têm muito em comum, desde sua aptidão no piano chegando a extravagância visual que os transformou em referência estética. A maior surpresa foi o fato da canção não ser uma balada, porque mesmo durante a jornada de altos bpms até aqui, era inevitável não achar que este cargo ficaria com ‘Sine From Above’Logo nos seus primeiros segundos já percebemos que a previsão foi contrariada, e a partir do momento em 1:26 é impossível não definir esta como a faixa tema de todo o conceito deste projeto.

Se o ‘planeta’ que dá título ao disco tivesse um hino nacional, seria esse. E o clima eurobeat muito bem encaixado dá a impressão que estamos ouvindo uma canção vencedora do Eurovision. A outro da canção pode causar estranhamento, mas acaba se tornando um charme, em uma emulação que soa como uma versão leve de Crystalline da cantora Björk. O clima continua muito bem em ‘1000 Doves’, provando mais uma vez que a questão da ordem das faixas foi um pensamento bem executado. A música (assim como outras muitas do projeto) poderia facilmente ser uma adição a famosa franquia de videogame Dance Dance Revolution.

O encerramento oficial fica a cargo de ‘Babylon’, outra música muito aguardada pelos fans. A ansiedade estava por uma produção pesada, o que aqui não acontece. Mas essa é a melhor decisão, o clima ballroom da canção era a sonoridade que faltava, onde Gaga utiliza muito dos seus vocais mais baixos e quase como que lendo um poema canta por cima de um saxofone essencial.

Quando falamos sobre Lady Gaga retornar a música pop não significa exatamente que ela precisa fazer o pop puro. Até porque, isso ela nunca fez. Sempre houveram algumas influências do dance, disco, funk(…) No trabalho atual muito se fala sobre a sonoridade inspirada na década de 90, principalmente na ligação entre o álbum e a house music. O que ouvimos é um mix disso e do eurodance. Esses dois subgêneros ditam exatamente como a narrativa vai ser seguida, e molda o ouvido do ouvinte a ponto de ser possível perceber nuances na produção, mesmo aqueles que não se importam em prestar atenção em toda a anatomia de uma música. 

O álbum é acessível, pois funciona tanto como um (possível?) ditador de uma nova moda na música popular, quanto como uma apresentação para os mais jovens, que não tem noção da importância da música dance do passado. Mesmo com tudo isso o trabalho não é pretensioso, o produtor BloodPop transforma as batidas em um convite a ser explorado, e as músicas são a porta de entrada para quem quer viajar em um gênero tão vasto.O projeto é sem dúvidas um dos mais evoluídos da cantora, provando que valeu a pena a espera de anos para os que vivem na linha temporal exigente de apreciadores.

Chromatica não vai ficar na história da artista como um álbum modesto, e talvez com o passar dos tempos acabe se tornando o grande favorito da maioria. Por partes em simples gosto pessoal, mas por outras em capacidade de analisar um disco como algo que vai de A a Z, passando por cada letra como se buscando um pedaço de referência que só se completa com sentido quando todas juntas, ao final do alfabeto. 

85/100

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