Crítica | “Barbie” é um clássico no melhor sentido pop

A experiência de “Barbie” no cinema é um deleite capaz de arrancar nostalgias, reflexões e, acima de tudo, risadas sinceras

Ele chegou, o filme mais esperado do ano. Diante de toda antecipação, Barbie estreou nessa quarta-feira, 19 de julho, sobre olhares atentos que buscam nele o título de “melhor filme do ano”.

Ambientado em dois mundos diferentes: o universo das Barbies e a cidade de Los Angeles, o longa explora os desafios da “Barbie estereotipada” (Margot Robbie) após se deparar com um questionamento sobre a morte.

Imersa em uma realidade intocável onde há uma Barbie Presidente (Issa Rae), uma Barbie Física (Emma Mackey) e muitas outras, todas alegres e realizadas, com carreiras de sucesso e “Dream Houses” rosas. A dúvida existencialista é seguida por imperfeições que denunciam: Algo de errado está acontecendo.

Crédito: Warner Bros. Pictures Brasil / Barbie (2023)

O perfeito modelo da boneca passa a ganhar celulites e perde o formato curvado de seu calcanhar, que a permite estar sempre de saltos. Na busca por respostas a esses ocorridos, a protagonista precisa ir até o mundo real para se confrontar com a garota que, ao brincar com ela, estaria causando essas mudanças.

Para além da responsável pelos seus pensamentos obscuros, Barbie encontra hipocrisias do nosso planeta nada cor-de-rosa, que dissolvem sua ideia de uma realidade igualitária proporcionada por ela e as demais bonecas da Barbieland.

O cinema dentro do cinema

“Barbie” parece fazer uma homenagem ao próprio cinema, tanto em sua composição de elenco, direção e roteiro, quanto em suas referências à clássicos.

A obra conta com um arsenal de nomes premiados, como Margot Robbie (“Eu, Tonya”, “Bombshell”) e Ryan Gosling (“La La La Land”,  “Blade Runner 2049”) como os principais Barbie e Ken. Bem como Noah Baumbach (Frances Ha e História de um Casamento) e Greta Gerwig (Lady Bird e Adoráveis Mulheres) por trás das câmeras.

No mais, dialoga com outros filmes, seja em conexões diretas, como no momento em que uma Barbie finge que nunca viu “Poderoso Chefão” e pede um Ken para explica-la, ou indiretas, como nas ambientações dois dois mundos.

Na construção do que a diretora deu o nome de “Artificialidade Autêntica”, isto é, o falso que assume que é falso, podemos ver ligações com outros filmes cenografados nessa mesma plasticidade, como o Show de Truman e Mágico de Oz. Apesar das referências construírem um alicerce sobre a ideia de um universo regido sobre outros fenômenos que não os do nosso mundo, a temática de um brinquedo infantil – que de fato existe – ofereceu outros pilares a esse cenário.

Entre brincar e assistir

Os locais pertencentes a “Barbieland” baseiam-se na ideia de uma “casa de boneca”. O filme acerta bastante ao levar essas definições ao pé da letra, trazendo sutilezas que remetem ao ato de brincar. Logo no inicio, por exemplo, a narradora explica que a protagonista têm o poder de se mover para onde quiser, já que quando se brinca com uma boneca não é necessário fazê-la andar de um cômodo para o outro.

Além de outros aspectos divertidos como as xícaras de brinquedo onde não há nada a ser bebido. Como resultado dessas sacadas, o público adulto é convencido por uma sensação de nostalgia. Uma vez que o filme embarca nessa realidade, fornece também uma sensorialidade muito única. Tanto na mesclagem dos elementos vivos com animados, quanto na ideia de “cada coisa em seu lugar” que prevalece no primeiro encontro com a “Dream House”.

Crédito: Warner Bros. Pictures Brasil / Barbie (2023)

“Barbie” é feminista?

As discussões a respeito dos papéis de gênero, tanto feminino quanto masculino, conseguem suscitar reflexões sem tornar a obra maçante. O caráter satírico da crítica a impede ser didática e piegas na hora de abordar questões que nem sempre são bem recebidas pelo grande público.

O humor, por mais político que seja, ganha corpo de forma sutil. Essa elegância se dá com piadas embasadas em outros ícones da cultura pop, para além da própria Barbie, e na fisicalidade, que em seu ar teatral, permite emergir algo diferente da literalidade da palavra, trazendo o cômico nas expressões dos atores.

O uso do surrealismo é marcante e se torna o maior aliado tanto do discurso feminista quanto da estética. A forma como a “Barbieland” e a realidade de Los Angeles se apresentam de maneiras caricatas, nos permite olhar para as incoerências naturalizadas do nosso meio. A vinda de pessoas de outras realidades para o “mundo real”, é um caminho reincidente para filmes, mas excepcionalmente bem aproveitado por “Barbie”.

A sequência em que Ken está sozinho na cidade grande é um bom exemplo da força do surrealismo de escancarar o absurdo da nossa própria realidade. Aqui, a linguagem cinematográfica é uma importante aliada, somando não só cenas do cotidiano em câmera lenta como imagens estáticas de elementos como notas de dinheiro. A velocidade com que tudo acontece e a hipertrofia dos corpos em cena confere a sensação de um delírio que nada mais corresponde ao mundo real.

I’m a Barbie Girl, In a Barbie World?

Apesar de uma das canções mais famosas do universo da Mattel, “Barbie Girl” da banda Aqua, ter sido vetada em razão de uma richa da Mattel com o grupo, a trilha sonora não deixou nada a desejar.

A escolha das intérpretes é um conjunto de múltiplas “Barbies”, assim como pretende o filme de 2023. As músicas de Lizzo, Dua Lipa, Nicki Minaj, Billie Eilish, Karol G, Charlie XCX, além de conectarem a obra à sua dimensão pop, fazendo-a repercutir para além das telas, propõe múltiplas facetas da boneca que conectam com os momentos da narrativa.

A canção “Pink” de Lizzo traz o lado divertido e descontraído, enquanto “What was i made for” de Billie Eilish emociona ao narrar um conflito que é próprio da história. Já o rap de Nicki Minaj, Ice Spice & Aqua chega com toda a confiança da artista, que é inclusive conhecida como “Barbie”, mas também com sentimento nostálgico pela utilização do sample da clássica “Barbie Girl”.

Adorável direção de Greta Gerwig

Greta Gerwig não fez da utilização de uma figura consagrada um live-action comum e por essas e outras, pode ser considera a alma do longa-metragem. A diretora confere um olhar único a partir de sua perspectiva jovem e feminina e de suas referências do cinema.

Esse olhar de Gerwig soube unir a tradição cinematográfica, de exemplos como “Singing in the Rain” e “Saturday Night Fever”, a um universo que é exageradamente pop. O filme, portanto, têm a classe dos clássicos sem perder o frescor de sua modernidade.

O caráter “feminista” de seus outros projetos se eleva a outra potência com “Barbie”, cuja expectativa norteia-se por um suposto símbolo do completo oposto. Saber atrair olhares sobre um ícone apropriado pelo machismo para então transformá-lo, não só em uma sátira aos delírios patriarcais, como também uma obra recheada de originalidade, é um grande feito.

Crédito: Warner Bros. Pictures Brasil / Barbie (2023)

Por fim, seja a pessoa que for assistir por sua paixão pelo cinema ou quem está apenas atraído pelo retorno da boneca, há consistência para ambos os lados.

O público mais leigo pode até acreditar que irá assistir uma enchurrada anestesiante de plástico e rosa. O que o espectador as vezes não espera é que a espertize de Greta Gerwig sabe fundir toda a magia da tradição Barbie a um discurso bem contemporâneo, num combo de unicidade e ironia.

A obra entrega qualidade cinematográfica, uma estética formidável e uma mensagem clara. Como resultado, a experiência de “Barbie” no cinema é um deleite capaz de arrancar nostalgias, reflexões e, acima de tudo, risadas sinceras — e levemente preocupadas — em 114 minutos que passam num piscar de olhos.

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