Talvez eu esteja seis meses atrasada, mas o tema deste artigo é o álbum Clancy, da banda estadunidense Twenty One Pilots. E talvez eu esteja um, quase dois meses atrasada, mas este texto também é sobre saúde mental.
Clancy é o sétimo álbum do dueto formado por Tyler Joseph e Josh Dun e, teoricamente, encerra a narrativa iniciada quando o disco Blurryface foi lançado, no longínquo ano de 2015. Essa narrativa debuta uma trama intrincada e conecta todos os discos que vieram depois. Cada álbum do Twenty One Pilots é uma peça de um quebra-cabeça que, a cada lançamento, aumenta o enredo. Quem lança um disco, aumenta um ponto.
Blurryface introduziu a figura central da narrativa, a homônima Blurryface, que representa as inseguranças e os medos internos de Tyler Joseph. Três anos depois, ao lançar Trench, a dupla expandiu a história para além do interior de Tyler, apresentando a cidade de Dema, um lugar opressor onde os habitantes são controlados. Scaled and Icy, álbum lançado em 2021, marcou uma pausa na história de Dema, dando um foco maior em temas como solidão e esperança, enquanto Clancy aprofundou a história, justamente, de Clancy, um personagem que representa a passagem do tempo e a necessidade de seguir em frente. Existem outros detalhes que aprofundam esse universo folhado, mas é sobre esse último disco (ou sobre essa personagem), surgido em 2024, que esse texto se refere.
O centro de gravidade da banda
Narrativas à parte, os discos de tøp falam sobre saúde mental – especificamente a de Tyler. Lutar contra a depressão, encontrar forças para sair do quarto, estabelecer conexões afetivas com familiares e amigos, ter gana de se levantar e encarar o mundo. Basicamente, esses são os tópicos que são abordados nos trabalhos do grupo, até mesmo nos discos Twenty One Pilots (2009), Regional at Best (2011) e Vessel (2013), lançados antes do surgimento da narrativa supramencionada. Isso até a chegada de Scaled and Icy, quando o grupo fala sobre o falso positivismo e a depressão em seu estado de calmaria.
Com sons popísticos, a sonoridade não se compara com a densa, roxa melancolia apresentada em Blurryface e Trench. Enquanto a melodia é dançante e animada, as letras mostram o contrário. “Tenho pensamentos ruins e sombrios e que tomam minha cabeça e meu corpo, mas estou bem”. Talvez por isso, dando sequência a trabalhos que consolidaram o trabalho de Tyler e Josh, Scaled and Icy não tenha tido uma boa receptividade do grupo. Onde se esconderam as composições desoladas, reclamonas e lamuriosas que, mesmo no olho do furacão, tentam encontrar o lado bom das coisas? Se esse disco, de capa à la embalagem de chicletes tutti frutti, é a faceta alegre da vida, há algo de errado. Scaled and Icy é um trabalho morno, mas que esquenta quando Clancy ganha vida.
O nascimento de Clancy
Maio de 2024 foi quando a narrativa se estendeu e retomou alguns pontos do enredo que teve início em 2015. Quase dez anos depois, o disco traz elementos do terceiro álbum da banda, Blurryface, com uma batida influenciada pelo hip hop e pelo grunge. Arrisco a dizer que, se Rage Against the Machine adicionasse sintetizadores às suas composições (e com isso eu digo ir além dos sons inimagináveis feitos por Tom Morello com suas guitarras de personalidade próprias), teria uma sonoridade próxima a Clancy.
Os singles promocionais que precederam o lançamento do sexto álbum de estúdio do tøp foram, em ordem de lançamento, Next Semester, Overcompensate e Backslide – e é essa última faixa que guia este texto daqui em diante.
O videoclipe de Backslide, que é o primeiro a ser dirigido pelo baterista da banda, Josh Dun, foi anunciado nas redes sociais antes do lançamento. Ele aborda um evento cíclico: Tyler sai para comprar pão em uma loja de conveniências e, em um caminho que lembra as ruas percorridas em bicicletas no clipe do hit Stressed Out, o protagonista passa por situações que, como na fábula de João e Maria, deixa pães pelo caminho que percorre. Ao chegar para encontrar com seu amigo e diretor do vídeo, Josh, Tyler já não tem mais pães, já que os entregou no percurso até chegar ali. Em um retorno cíclico, a personagem retorna à loja de conveniências, faz, novamente, sua compra, e percorre o caminho de volta. Dessa forma, percebe-se, apenas pelo clipe, que ali são abordadas questões cíclicas.
Dentre tantas dificuldades que assolam a vida, quebrar ciclos é uma das mais difíceis. Romper o hábito de comer um docinho depois do almoço, mudar o circuito da corrida de todas as manhãs, pedir a última rodada do bar, experimentar um sabor diferente de sorvete naquele estabelecimento de esquina onde você faz o mesmo pedido há anos. Todos esses são exemplos de quebras de sequência, início de novas eras.
No entanto, sempre há a possibilidade de retorno ao ponto de partida. Velhos hábitos não morrem, como dizem por aí. E se o sorvete de de cupuaçu não for tão gostoso quanto o de chocolate? Sempre há essa possibilidade.
Análise da terceira faixa
Backslide não fala sobre vencer vícios, e sim sobre não se deixar retornar a esses hábitos. Indo além de referências ao 1984 de George Orwell e ao evangelho de São Mateus, Tyler Joseph é aberto quanto a suas lutas. O músico precisa se manter são, não apenas por seu bem estar mental, mas porque não teria forças para vencer outra recaída, caso tivesse.
Superar um vício (que, em razão do conhecimento do contexto do grupo, infere-se tratar de depressão) é difícil. A dificuldade começa antes mesmo disso, ao perceber o contexto no qual se está inserido. Depois dessa identificação, é preciso mudar o ambiente, o contexto, a mentalidade ou, pior, o mindset. Quebrada a inércia, o corpo em movimento tende a continuar em movimento, como diria nosso amigo Newton. No entanto, se você se lembra das suas aulas do ensino médio, você sabe que tal corpo só continua em movimento até o momento que forças passam a atuar sobre ele. Atrito, por exemplo. E aí aquele corpo que se encontrava em um movimento contínuo deixa de se deslocar da forma como se deslocava. É mais cômodo eliminar as forças que atuam contra essa peça para que ela continue a fluir, do que realizar o mesmo movimento do marco zero.
A batalha não é mais contra a depressão – é sobre dar continuidade a esse trabalho diário. E, como dito lá em cima, o trabalho do tøp é um quebra-cabeças composto por várias pecinhas. Ao escutar o disco Clancy por inteiro, percebe-se claramente que, mesmo fora de ordem, as faixas representam uma unidade. O álbum é coeso e, ao se deixar cair no looping saudável de escutá-lo e reescutá-lo, nota-se que há uma narrativa à parte da construída pela banda. Clancy é autossuficiente, um ecossistema por si só.
Talvez este texto devesse ter sido publicado em setembro, mas eu estava ocupada demais dedicando a minha energia para manter meu corpo em um movimento contínuo.