“MAYHEM” é o reflexo hipnótico e nostálgico de Lady Gaga

Forte, impactante e moderno, MAYHEM projeta Gaga para o futuro, mesmo embebido em referências clássicas

O ano era 2008 e Lady Gaga lançava seu primeiro disco, The Fame. Quem é apegado a mídias físicas e/ou já se deu o trabalho de ler o encarte do álbum, encontrou um pequeno texto de agradecimento: “Obrigada Andy Warhol, David Bowie, Prince, Madonna e Chanel”. Se de lá pra cá ela não tentou esconder suas origens, referências e inspirações, MAYHEM escancara um retorno às origens de uma persona que nunca deixou de ser quem se apresentou.

Trilhando rumos no jazz, explorando o rock, folk e country, os avisos de que o sétimo trabalho da artista voltaria ao pop tradicional que a consagrou nos fez ansiar por um disco pop com sintetizadores viciantes, repetições hipnotizantes e melodias históricas. Mas, Gaga foi além, como se buscasse a si mesma naquele primeiro encarte, e encontrasse novos caminhos interessantes.

Anunciado como um disco “caótico”, pop, industrial e principalmente pesado, MAYHEM reúne em 14 faixas—na versão standard— uma Lady Gaga explorando novas referências e elementos de sua discografia, que brilham aqui de forma quase inédita, e um estudo de ícones pouco explorados por ela em outros momentos anteriormente em sua carreira. É essa miscelânea pop que constrói, nos fragmentos, samples, interpolações e alusões, um renascimento cultural e um disco sólido, potente e caoticamente frenético.

Disease“, a primeira faixa divulgada do álbum (até a revelação de que “Die With a Smile” faria parte da tracklist), é também a primeira música do disco, que nos introduz com um tom obscuro, as batidas bem marcadas vindouras do The Fame Monster e um final com vocais intensos e guitarras distorcidas remanescentes do Born This Way. Aqui Gaga parece avisar que vai colocar pitadas de suas referências rock no álbum, escapando de um pop tradicional e mais uma vez nos levando para um lugar inesperado.

“Abracadabra” vem na sequência, mais uma vez mergulhando em uma Gaga de outros tempos e trazendo de volta o melhor de seu pop esquisito. Com referências (sonoras e visuais) que ajudaram na consagração da estrela, a repetição de sílabas, a ponte dramática com vocais clássicos e os sintetizadores estimulantes que lembram seus melhores trabalhos, não é de se espantar o sucesso e aclamação que a faixa vem recebendo, mostrando que o pop e Lady Gaga nunca deixaram de ser uma dupla intrinsecamente imbatível.

“Garden of Eden” é a primeira faixa “parcialmente” inédita do trabalho. Isso porque, apesar de não termos tido nenhuma prévia dessa canção até o lançamento do disco, a faixa é uma versão retrabalhada de “Private Audition”, uma música descartada da época do The Fame, primeiro disco da artista. Com o melhor da nostalgia da época, Lady Gaga consegue trazer uma produção atual para elementos nostálgicos que remontam ao Blackout, de Britney Spears, e trazem o pop que a consagrou em seu primeiro disco de volta ao presente.

Perfect Celebrity” parece nos levar de volta para o mesmo universo de “Disease”, com um sintetizador sombrio, baixo distorcido e um refrão direcionado para o rock de Nine Inch Nails. Com um final eletrizante e os vocais crus da artista, é um ponto alto e marcante no disco. Com uma abertura chamativa e um piano que nos lembra algum clássico de Elton John, “Vanish Into You” caminha para um lado mais feliz da década de 80, com uma pegada disco em referência à Bowie, vocais cativantes e bem trabalhados e uma referência quase direta à “Bad Romance”, que segue sendo um dos maiores clássicos da própria carreira.

Na sequência vem “Killah” dividindo opiniões. Para muitos uma faixa “estranha”, é aqui que Bowie chega com tudo e Gaga traz duas faixas do artista como referências explícitas. “I’m Afraid of Americans”, que já havia recebido um cover na voz de Gaga durante a residência “Enigma”, em Vegas, e “Fame”, que Gaga provocou em uma demo nunca lançada oficialmente de “Babylon”. A faixa é uma parceria creditada com o produtor Gesaffelstein, que já trabalhou com artistas como Lana Del Rey, Kanye West e The Weeknd. Um mix perfeito entre o lado mais descontraído de “Vanish Into You” e o tom sombrio do disco, essa é uma das faixas mais alucinantes do trabalho, que deixa seu instrumental brilhar por mais de um terço da canção, nos levando para lugares inesperados, pesados, desconfortáveis, hipnotizantes e incríveis da mente e artisticidade de Gaga.

Zombieboy” ficou encarregada de trazer o ponto de normalidade para MAYHEM, nos levando diretamente para o melhor do pop dos anos 2000. Com uma abertura que nos lembra “Hollaback Girl”, de Gwen Stefani, e o instrumental que parece brincar com clássicos do primeiro disco da artista, “Zombieboy” vem com o melhor de “Summerboy”, “Disco Heaven” e “Retro Dance Freak” clássicos de Gaga que parecem finalmente ganhar a justiça que sempre mereceram.

Com um tom oitentista bem marcado e que soa como um clássico que já consagramos antes, “LoveDrug” é uma ótima sequência. A guitarra aqui brilha ao lado dos vocais impecáveis da artista, que parece mergulhar no melhor do soft-rock dos anos 90 para entregar essa semi-balada deliciosa em sua discografia.

“How Bad Do U Want Me” soa como o primeiro deslize de um álbum quase impecável. Embora beba também de uma fonte oitentista e pareça uma referência direta à “Only You”, da dupla de synthpop Yazoo, a música lembra muito alguma das produções de Jack Antonoff para Taylor Swift. Não é um demérito, mas é uma faixa que destoa da produção refinada de MAYHEM. Embora pareça um respiro muito bem-vindo à essa altura do disco, a faixa soa como um descarte de Ally, a artista que Gaga interpretou em Nasce Uma Estrela. É como se “The Cure”, “Love Me Right” e “Heal Me” recebessem uma visita, mas que no contexto sonoro do álbum, parece derrapar.

“Don’t Call Tonight” nos leva para uma paisagem menos datada dos anos 80: aquela que consagrou a música de The Weeknd e que soa grandiosa na voz de Gaga. A guitarra no refrão coloca novamente um flerte disco para o que poderia ser uma grande balada atemporal, ao passo que a música cresce e brilha com os vocais distorcidos à la Daft Punk, uma pegada de Prince e a batida chiclete que amamos em toda boa música pop.

“Shadow Of A Man” traz mais uma das grandes referências de Gaga para a linha de frente. Aqui, Michael Jackson dança feliz ao som de suas melhores contribuições para a música mundial: a progressão do baixo, a melodia cativante, a batida guitarrada e a produção magnética que fazem com que as músicas do artista sejam para sempre atemporais. Gaga mistura tudo com uma produção refinada, vocais impecáveis e entrega um de seus trabalhos mais sólidos.

“The Beast” vem como uma mistura de Leona Lewis e grandes clássicos que fechariam sucessos de bilheteria dos cinemas no fim dos anos 80. Outra música que parece retirada do cofre de Ally Maine, essa soa menos datada, mas não muito mais gostosa que “How Bad Do U Want Me”. Mesmo com vocais no ponto e boas intenções, não consegue brilhar como o restante de um álbum tão refinado.

“Blade of Grass” se apresenta de cara como uma das grandes baladas da carreira de Gaga. A altura de clássicos como “Speechless” e “Brown Eyes”, parece beber da mesma fonte que “Happy Mistake”. A declaração de amor para seu noivo, Michael Polansky, traz a vulnerabilidade e crueza de uma Gaga apaixonada, aberta, correspondida. Apesar do tom mais melancólico, sabemos que esse é um dos primeiros atos de uma história feliz, que parece se completar na próxima faixa.

Assim, sem soar descolada do disco, “Die With A Smile” parece o encerramento perfeito para um trabalho tão nostálgico e bem construído. Embora seja quase completamente oposta à “Abracadabra”, por exemplo, ela parece a refração perfeita de um mosaico brilhante. Ainda no melhor dos anos 80, com vocais marcantes de Gaga, uma batida forte e uma melodia hipnótica, o duo romântico traz Bruno Mars para uma das melhores faixas do último ano, fechando MAYHEM com chave de ouro.

Se a Stefani que queimava spray de cabelo, colava quadrinhos espelhados em seus sutiãs e batia cabelo ao som de mixes pop-rock e heavy-metal em bares e boates duvidosas de Nova York ainda pudesse ser encontrada em algum lugar, seria vista dançando irreverente à boa parte desse disco, vibrando feliz por uma versão de si mesma que superou todas as expectativas e desafios de uma trajetória tão icônica.

Enquanto reúne pop, dance, grunge, rock, funk, disco e soul, MAYHEM se consagra como um digno retorno às origens, mas de uma artista destemida e coerente, que finalmente traz novas referências para a linha de frente. Celebrando suas paixões e escancarando seu talento, Lady Gaga reafirma sua força para provar que sua música — estranha, nostálgica, viciante e criativa — tem potência e espaço para avançar, conquistar e definir ainda mais o futuro.

89/100

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