Crítica | Kendrick Lamar, “Mr. Morale & The Big Steppers”

Novo álbum do rapper chega após longa espera de 5 anos e só reforça Kendrick como um dos maiores contadores de história da atualidade

Quando um artista passa um longo período de tempo sem aparecer, isso abre inúmeras portas para que o seu retorno seja no mínimo excelente. A ansiedade que cresce em torno de escutar um lançamento inédito às vezes gera um gosto que vai além da idealização de expectativas. É importante ter um controle sobre isso, ainda mais sabendo que absolutamente qualquer artista irá sempre trabalhar com diferentes vertentes e estéticas.

Desde 2017 sem um projeto completo (o “DAMN.” foi o seu último), Kendrick Lamar volta com um registro dividido em duas parte. E ele magicamente sabe que a espera envolta de novas músicas suas iria causar impacto; colisão essa que agora chega e é muito bem manejada pelo artista, onde mais uma vez não decepciona ao entregar a marcha para controlarmos as ações que um novo trabalho seu provocaria.

Lamar nos oferece uma trilha sem subidas e descidas perante memórias e contextos sobre a moral da sociedade, mas que funciona como uma curva sinuosa com o propósito de nos fazer criar miragens sobre subidas e descidas; é uma descrição confusa, mas justa. Ele nos tem novamente em suas mãos, agora sob uma nova obra, o Mr. Morale & The Big Steppers”.

Imagem: Renell Medrano / Complex

Passaram-se 1.855 dias (conta Lamar na faixa de abertura que se transmuta por constelações sonoras belíssimas, “United In Grief”), e esse número é agora multiplicado para gerar como resultado uma nova coleção imensa de pensamentos e autoavaliações despejadas sobre o ouvinte. É quase assim que o novo disco instala a sua ideia, mas antes, ele avisa que diante de tudo que passou, estamos unidos no luto, pois é no fato de ficarmos enlutados de formas diferentes, que somos juntos, um só.

A canção serve brevemente como um abraço de dois tipos: um que te protege de tudo, e o outro como um que te carrega e transporta para o mais fundo centro do projeto. Kendrick com apenas uma faixa consegue criar glóbulos de energias que são carregados durante as 18 canções, e quando chega ao seu limite máximo, a explosão é como de costume em suas obras, irresistível.

Mas é na parte dois do projeto que encontramos o cerne de uma alma em forma de som e palavras. “Count Me Out” é até simples em alguns moldes de construção, mas compactua muito bem com a atmosfera, sem contar com a redoma chiclete criada pelo apelo da canção; com “Auntie Diaries” vemos mais uma faceta de um ser crível da composição, a calma canção (em sentido sonoro, óbvio) sobre seu tio transgênero é poderosa e faz observações impecáveis sobre as feridas que alguns decidem fingir que não existem enquanto pregam ideais que muitos precisam gritar a todos os pulmões para se ter respeito.

Imagem: Renell Medrano / Complex

Mother I Sober“, que é certamente a canção do ano, levanta consigo uma força insaciável, ganhando vida crucialmente pela narrativa dura sobre os abusos dentro de suas gerações de famílias. Toda essa questão é interligada com os podres que uma sociedade pode causar em uma geração que se torna assombrada. A música é recitada com uma fúria cortante, mesmo que Kendrick Lamar levante o tom do seu flow somente perto do terceiro ato. No fim, o ouvinte pode ou se derramar em lágrimas, ou se sentir como estivesse flutuando devido a assombrosa composição técnica. Mas ainda assim, de coração partido.

Por entre jogos de palavras inimagináveis aqui e ali, e até mesmo uma evocação fortemente carregada e difícil de ouvir em algumas circunstâncias sobre quão cruel e injusto uma figura masculina possa parecer (“We Cry Togheter” traz Lamar e Taylour Paige recriando uma discussão brutal de um casal), há uma histeria deliciosa no projeto. Tal sentimento é totalmente perceptível por através das escolhas técnicas e claro, o discorrer inteligente e irreparável sobre a paisagem cultural e males sociais, entre muito dos gritos, há também o desejo só de sussurrar.

Em algumas complexidades que ficam soltas no ar, Mr. Morale & The Big Steppers não é melhor que seu antecessor, mas ao descrevermos as outras peças que ficam em órbita de maneira honesta e nada simplistas, esse aqui é um álbum que novamente deve ganhar apenas uma nomeclatura para mais uma obra dentro da discografia de Kendrick Lamar: obra-prima.

Nota: 95/100

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