Como castigo por desafiar constantemente a vontade dos deuses, Sísifo teria de rolar morro acima uma grande pedra de mármore que, ao se aproximar do topo, seria automaticamente tomada por uma força descomunal que a rolaria de volta para o sopé da colina. Dessa forma, Sísifo, rompido de qualquer autonomia, seria obrigado a voltar atrás e carregar a rocha pelo mesmo trajeto, de novo e de novo, nessa tarefa infindável que o ocuparia por toda a eternidade de sua morte.
Ao evocar essa antiga punição divina em “You’re All I Got”, Wesley Schultz e Jeremiah Fraites fazem mais do que apenas referir-se à uma relação falida. Eles exploram a automatização da necessidade do outro, o peso de uma existência marcada por uma oscilação constante entre o desejo de sentir algo e o impulso de entorpecer qualquer emoção que ouse surgir à tona. Este conceito permeia todo o disco, imerso em uma reflexão existencial sobre os paradoxos da vida moderna. É assim que The Lumineers introduz o peso do quinto álbum de estúdio da banda, Automatic.
São longos, os 20 anos tomados pela dupla na indústria da música. Com sucessos atemporais do indie folk como “Ho Hey”, “Stubborn Love”, “Ophelia” e “Sleep On The Floor”, além de assinatura em trilhas sonoras que vão de super-franquias como Jogos Vorazes até grandes novelas da Rede Globo, nunca são baixas as expectativas pelos novos projetos da banda. Dessa vez, não poderia ser diferente. O erro está, é claro, em esperar que The Lumineers produza mais do mesmo: A relevância dos seus discos anteriores é inegável, e mais músicas como aquelas seriam recebidas de muito bom grado pelo público, já que compartilhariam da qualidade indiscutível. No entanto, não seriam os mesmos Lumineers caso se negassem a cantar novas histórias, sempre mais densas, expressivas e inevitavelmente intimistas.
Embora a fórmula que consagrou The Lumineers continue presente em Automatic – a sonoridade texturizada, orgânica e recheada de harmonia –, este álbum se desvia de qualquer repetição. A mudança já se faz clara logo no lead single, “Same Old Song”, que combina uma melodia vibrante com versos de uma melancolia pungente. É um equilíbrio que a banda executa com maestria, e que só intensifica a sensação de que estamos diante do álbum mais introspectivo e emocional de sua carreira.
E não é atoa: Quando questionado sobre o conceito que permeia as faixas do novo disco, Schultz comenta que o álbum “ explora algumas das absurdidades do mundo moderno, como a linha cada vez mais tênue entre o que é real e o que não é, e as diversas formas pelas quais nos entorpecemos enquanto tentamos lidar tanto com o tédio quanto com a superestimulação.”
Tais temáticas são claras em canções como a rítmica “Plasticine”, que pede para que o ouvinte os molde como bem entender, contestando o ato de se render aos desejos da indústria ante a própria arte, ou mesmo “Ativan” e “Better Day” que seguem a linha taciturna de se render a entorpecentes e ao vício digital na tentativa de suprir a necessidade por conexões fortes e reais. Até mesmo “Strings” e “Sunflowers”, que se ausentam de falas e dão lugar somente a instrumentais breves ainda que marcantes, conseguem fazer correlação com os temas.
O ponto alto de Automatic, contudo, é resguardado pelas faixas de número 8 e 11. “Keys On The Table” conversa diretamente com “You’re All I Got”, dando continuidade ao castigo de Sísifo, agora condenado a dor de aceitar uma batalha perdida pelo que ela é, e à vergonha de ainda precisar delegar a ação do fim ao outro. Já que, como na mitologia, o eu lírico continua condenado à falta de força maior para acabar com tudo. “Leave your keys up on the table (…) / Everybody knows you’re all I got / And honestly, I feel ashamed to breathe / I can’t believe we lost to the machine.”
Em “So Long”, a despedida final do álbum, a banda eleva as emoções a um novo nível, encerrando com uma intensidade que captura a essência de tudo o que foi construído até ali. A linha “Maybe we’ll be famous when we die” ecoa com um toque de melancolia agridoce, uma conclusão perfeita para um álbum que, desde o início, se mostrou inevitavelmente intimista e visceral.
Automatic é, sem dúvida, um dos trabalhos mais densos e provocativos de The Lumineers. Ao se aprofundar nas complexidades da vida moderna, a banda não apenas apresenta novas camadas de sua identidade artística, mas também nos convida a refletir sobre o estado do mundo e de nós mesmos. Como sempre, eles fazem isso de uma forma única – autêntica, profunda e inesquecível.