Biografias musicais costumam seguir uma fórmula. É como se, ao contar a vida de alguém tão único, o cinema ainda insistisse em usar sempre o mesmo molde. Homem com H, dirigido por Esmir Filho, também parte de uma estrutura familiar, mas aos poucos vai escapando dos lugares-comuns. O filme pulsa. Tem escolhas visuais menos óbvias, um ritmo mais constante e uma energia que o distancia dos biopics que apenas repetem marcos de uma trajetória. Uma energia que hipnotiza, de um jeito que só Ney Matogrosso conseguiria fazer, e o ator Jesuíta Barbosa, com um talento fenomenal, soube transparecer isso de uma forma única e sensorial.
Logo no início, vemos o Ney, enquanto criança, correndo pela mata como se fizesse parte dela. As imagens se alternam com o Ney (Barbosa) adulto, em um palco, livre, inteiro. A natureza e a cena como territórios possíveis para esse corpo que não se acomoda. Ney sempre foi assim: instintivo, intuitivo, difícil de enquadrar. Como um bicho que só sobrevive solto. No palco ou no mundo, ele voa e seria impossível imaginar esse voo contido. Seria a morte do artista. Talvez também a do homem.
Esse instinto de liberdade se torna ainda mais evidente à medida que a narrativa mergulha nas complexidades da relação de Ney com seu pai, o ex-militar Antônio Matogrosso. Homem violento e profundamente reprimido, ele nunca escondeu sua dificuldade em lidar com o filho “diferente”, punindo Ney por não corresponder às expectativas tradicionais de masculinidade. No entanto, ao longo da trama, vemos uma lenta e dolorosa transformação: apesar da rigidez, o pai começa, aos poucos, durante várias etapas da vida do filho, a ceder espaço para o afeto, revelando uma forma de amor possível, ainda que imperfeita, e quase um início de aceitação.
É sob essa urgência de liberdade que Ney se construiu. Nunca quis bandeiras fixas, nunca foi panfletário. Sua política sempre veio no gesto, no corpo, na escolha de repertório. E o filme entende isso. Esmir traduz bem essa liberdade que não precisa se explicar.
Um desses momentos é quando Ney e seu primeiro namorado aparecem fazendo sexo, e as imagens logo são intercaladas com a rotina do depois: vestir a roupa, seguir o dia. Algo que poderia ser a beleza da intimidade cotidiana. Mas aqui, é o prenúncio de um limite a tentativa de colocar um espírito livre dentro da caixinha do amor normativo. E a resposta é clara: não cabe.
Em outro momento, a narrativa resgata a fase em que Ney Matogrosso passou pelo exército. Homens em treinamento militar, corpos suados e expostos. Uma referência comum entre cineastas queer, mas aqui ganha nova camada. O quartel de Esmir é puro desejo encenado: um flerte constante, um jogo de tensões homoeróticas que se impõem com força, mas também com certa delicadeza. É tudo estilizado, quase performático, e talvez um pouco exagerado, mas funciona. Estão entre os melhores momentos do filme.
Só que Homem Com H ainda é um filme comercial. E nesse contexto, liberdade total ainda é uma utopia. As cenas de sexo são muitas, são intensas, mas sempre param um passo antes do que incomodaria demais. A nudez existe, mas sempre sombreada. O desejo é pulsante, mas nunca fora de controle. A gente sente que o filme quer ir até o fim , mas recua quando sabe que o público talvez não acompanhe.
Ainda assim, há avanço. Há risco. E há beleza em ver um filme nacional que escolhe mostrar um artista tão indomável sem tentar domesticá-lo por completo.
Homem Com H não tenta explicar Ney Matogrosso: tenta senti-lo. E nisso acerta de todas as maneiras. Porque Ney nunca foi personagem de roteiro pronto. Foi sempre corpo em movimento, presença que desafia e desarma, a alma que cativa. O filme pode até não romper todas as grades, mas abre frestas. E por elas, entra luz. Entra arte. Entra Ney Matogrosso, jurando mentiras e assumindo os pecados, do jeito que sempre foi: inteiro, indomável e vivo.