Aqui vai um fato sobre fins de relacionamentos: não importa o quão dramático, triste e catastrófico você sinta que seu término foi, sempre haverá alguém que já sentiu o que você está sentindo — e que fez uma música sobre isso.
“Todo mundo sofre uma desilusão, fica muito apaixonado, quebra a cara; algumas pessoas são traídas — não vou dizer que todas… Essas coisas acontecem. O clichê, minha filha, é clichê por uma razão: todo mundo passa por aquilo” , explicam as compositoras mineiras Clara e Sofia. “E um clichê bem contado pode ser muito certeiro para alguém”.
Elas sabem a importância de acertar na narrativa. Há cinco anos compondo canções autorais, a dupla pop acumula um leque admirável de trabalhos, dentre singles, EPs e o álbum “Nada Disso É Pra Você”, lançado em agosto do ano passado.
O que começou em 2016 como um improviso em um happy hour — as duas sequer se conheciam quando se juntaram para cantar Banana Pancakes, de Jack Johnson, a pedido de um amigo — evoluiu para uma carreira que repercute no mercado da música brasileira. Figurinhas carimbadas no lineup de festivais como o Planeta Brasil, Meca e Breve, Clara e Sofia chamaram atenção a nível internacional e foram convidadas pela banda inglesa Coldplay para abrirem cinco dos onze shows que fizeram no Brasil em março deste ano.
“Bem E Longe De Mim,” o novo single de Clara x Sofia e Clarissa
Para além da agenda de shows, o mais recente trabalho das duas é o single “Bem e Longe de Mim”, composto e gravado em parceria com a carioca Clarissa. A música conta de forma inovadora uma história comum: uma jovem que terminou um relacionamento mas sofre com o sentimento de posse ao ver que o ex-parceiro a superou e está bem.
Nessa faixa, as compositoras lançaram mão da técnica do storytelling ao criarem um universo para o eu lírico da letra. Clara conta como foi o processo de escrita a seis mãos: “Comecei a criar a música durante o banho — é um momento em que me dá um ‘estalo’ e tenho várias ideias. Então, levei a ideia para o estúdio, para finalizarmos juntas. Ao final, estávamos realmente contando uma história, foi supergostoso, adoro contar histórias. Estávamos dizendo ‘ela está segura, mas ela está jogando…’ e assim fizemos toda a construção de uma personagem”.
Esse trabalho criativo é transposto também para o momento da gravação. Sofia explica: “No estúdio, ficamos nos perguntando quem é essa menina, o que ela quer, o que ela pensa, como ela canta. Ela existe dentro de todas nós, mas, até a encontrarmos na gravação, foi preciso fazer uma pesquisa. Percebemos que ela não é direta, mas conquista nos detalhes, como um sussurro no ouvido. É uma sedução sutil.”
Uma aposta nas narrativas detalhistas
Transformando o oversharing em aliado, o duo se recusa a compor letras vagas ou abstratas. Para elas, quanto mais específico, melhor. Nesse aspecto, sua criação acena para a de grandes estrelas da Geração Z, como Olivia Rodrigo e Phoebe Bridgers — especialistas em combinar observações afiadas e confissões sutis. Essa abordagem garantiu a Rodrigo e Bridgers uma legião de admiradores que se identifica com as letras autobiográficas que dizem o “indizível”.
Os dilemas de Clara x Sofia não são muito misteriosos: os problemas são identificáveis, suas soluções estão disponíveis, mas a vida de uma jovem mulher tem momentos agridoces. As dores do amor podem ser universais, mas a maneira com que as duas as abordam é o que garante frescor e originalidade às músicas. Em cada faixa, elas nos permitem explorar suas fantasias e vulnerabilidades, sem muitos filtros, frescuras ou triplos sentidos. Talvez um equilíbrio entre a angústia e a liberdade do pensamento existencialista, um dos interesses literários da dupla, leitora de Albert Camus.
Não por acaso, a divulgação de seu primeiro álbum, “Nada Disso É Pra Você”, apresentou o disco como um diário, um olhar quase documental sobre quem são Sofia e Clara. Na faixa-título, uma investigação autobiográfica: “Sabe aquele dia em que você tem a sensação de ‘putz, acho que passou’ [a paixão por alguém]? Ficamos pensando em como transmitir isso. Então, me lembrei de uma época em que eu passava em frente ao trabalho do meu ex-namorado e sentia um frio na barriga. É uma memória imagética que restaura tudo [daquele relacionamento]. Até que um dia, parei de sentir isso; nada mais simbólico do que passar na frente do trabalho da pessoa, ou do portão da casa dela, e pensar ‘dane-se!’, percebendo que o sentimento passou.”
O “chiclete chic” de Clara x Sofia
Podem haver muitas explicações para o sucesso das canções do par: são cativantes, bem produzidas e bem interpretadas. As letras são diretas, nítidas e honestas. Combinam refrões marcados e elementos sonoros elaborados, trazidos do samba, rock e bossa nova. Abordam temas triviais, sem tentar subvertê-los de forma pretensiosa por medo de afastarem os que buscam algo novo.
Para se referirem ao próprio estilo, uma fusão de todos estes fatores, as duas cunharam o termo “chiclete chic”: um cruzamento da frivolidade e despojamento do pop com um toque de sofisticação e personalidade.
Esse conceito não para nos refrões que grudam na cabeça, e adere também ao conceito estético da dupla. Ainda que eclético, o visual de Clara x Sofia traz elementos da linguagem Y2K — uma retomada do início dos anos 2000, era de ouro da cultura pop, das calças de cintura baixa e das barrigas de fora.
Combinando escapismo e autoexpressão, os clipes e figurinos da dupla abusam de padronagens ousadas, cores vibrantes e peças metalizadas. Essa linguagem transmite visualmente o que é sua música: divertida e vibrante, com um toque futurista. Como referência, elas apontam o clipe de Say My Name, do trio Destiny’s Child, e uma personificação da popstar moderna: Dua Lipa (com foco na fase Future Nostalgia).
O design dessa imagem ajudou a concretizá-las como uma instituição por si só. Hoje, para além de Clara Campara e Sofia Lopes, há o elemento “Clara x Sofia“, uma interseção das duas costurada entre moodboards e pastas no Pinterest. Elas concordam: essa é uma das melhores partes do trabalho.
“Quem está nos filmando agora é meu namorado [o videomaker Pedro Gibram], e nossa DM no Instagram é só ‘olha esse take, que legal’, ‘olha essa técnica, que maluca’. A gente troca figurinha o tempo inteiro, é um lado do trabalho de que gostamos muito. Eu e Sofia somos bastantes ligadas ao belo. Quando entrei na faculdade, queria ter feito moda, mas não deu certo. Então, pensar nos figurinos, desenvolver as roupas, é muito gratificante. Essa dimensão visual é praticamente um hobby dentro do nosso trabalho. É mais uma forma de entregarmos o conceito ‘Clara x Sofia‘”, reflete Clara, que, antes de cantora, era engenheira química, mas trabalhava como maquiadora.
Sofia complementa: “No começo, a Clara brincava de boneca comigo. Ela sempre foi ligada à moda e, ao longo do tempo, ela me mostrou como me expressar por meio do que vestimos e usamos no rosto.”‘
Estes processos estimularam o amadurecimento da dupla também no campo pessoal. Com carreiras que começaram quase ao mesmo tempo que suas vidas adultas, a dupla encara os palcos como um ambiente de descoberta feminina e de resistência a um mercado predominantemente masculino.
“Sou muito grata pela oportunidade de trabalhar com música, fazer tanto trabalho visual e poder explorar a minha imagem. Nesse processo, me descobri e me permiti enquanto mulher, descasquei muita coisa. Você se coloca em um lugar de muita vulnerabilidade e descoberta, mas também de muita força. Para mim, foi transformador subir em um palco e exercer o ápice da minha essência feminina. É um trabalho que dá muito para a gente nesse âmbito”, reflete Clara.
Os tijolinhos de Clara x Sofia
Gratidão e humildade fazem parte da ética de trabalho das mineiras, que se dedicam constantemente a melhorar seu ofício. Conscientes de que beleza e talento não são os verdadeiros poderes na indústria da música, elas apostam em entregas consistentes, mirando o longo prazo.
Com invejável profissionalismo, Clara pondera que “o artista jovem precisa trabalhar muito mais, se envolver muito mais. As coisas são mais difíceis e mais competitivas hoje em dia. É um mercado em que você precisa entregar a perfeição e, ao mesmo tempo, a sua verdade — um equilíbrio bem difícil de se atingir. Vemos nossa carreira como uma construção de tijolinhos: há dias em que colocamos tijolinhos maiores, dias em que colocamos tijolos menores, mas é sempre uma construção”.
As queridinhas do Coldplay
Há tijolos de vários tamanhos, é certo, mas há também os “tijolos de ouro”. É assim que elas definem um dos grandes marcos de sua carreira: o convite da banda Coldplay para serem a atração de abertura das apresentações que fizeram no Rio de Janeiro e em Curitiba em março.
O convite foi feito oito meses após o primeiro contato da equipe dos britânicos, que as informaram de que estavam sendo cogitadas para abrir os shows da turnê Music of the Spheres. Uma curadoria inicial foi feita pela Live Nation, produtora que organizou as apresentações da banda britânica no País. Por sua vez, a decisão final de colocar Sofia e Clara nos palcos foi tomada pessoalmente por Chris Martin e seus colegas de banda.
A partir daí, se seguiram três meses de trabalho intenso para ajustarem suas coreografias, figurinos, setlist e, claro, seu psicológico, para shows dignos de alguns dos maiores estádios do país.
As performances superaram até as expectativas mais otimistas. Diante de quase 50 mil pessoas por noite, a dupla cativou a plateia e aproveitou cada minuto da meia hora que tinham disponível para apresentar, em grande estilo, quem é Clara x Sofia. Essa última revela: “Estávamos nos preparando para todos os cenários possíveis. Sabemos que as bandas de abertura nem sempre têm boa receptividade por parte do público, mas as pessoas foram incríveis conosco, inclusive por sermos brasileiras. A própria Coldplay prega valores de pertencimento, então as pessoas estavam muito abertas para nos receberem.”
A experiência tem reverberado em diversos níveis. “Foi uma aula estar com uma equipe tão experiente, uma estrutura tão gigantesca. Aprendemos no quesito de produção, de compromisso, profissionalismo, maturidade artística. Foi transformador. É um empurrão para continuarmos acreditando em nós e nunca deixar isso passar. A carreira musical não é fácil. Você duvida de si a todo momento, vive de aplauso, o que é muito complicado. Nunca nos esqueceremos de que o Coldplay nos escolheu para estarmos lá, e isso é um incentivo muito grande. Mais do que um selo para os outros, foi um selo para nós mesmas,” afirma Clara.
Mesmo diante de tamanho reconhecimento, as duas mantêm o espírito despretensioso e focado que diz tanto sobre seu sucesso. “Fomos selecionadas porque nossa carreira — e tudo que fazemos — é uma construção. Nada é por acaso, nada é impensado. Por muito tempo, brincamos que tínhamos caído de paraquedas na abertura do Coldplay mas, na verdade, não caímos. A consistência e a coerência são qualidades que, modéstia à parte, nós temos. Prezamos muito por isso em nosso trabalho”, concluem, resumindo a jornada de Clara x Sofia até aqui.