Crítica | Arca, “KiCk i”

Não é sempre que Arca é citada pelo seu trabalho apenas de forma positiva, na verdade, em muitas vezes sua música e aclamação com a crítica é usada em comparação contra algum outro produto pop, sob uma nova forma de dizer ‘’esse barulho é melhor que aquela música?’’. Esse tipo de discurso é muito antigo quando falamos sobre artistas que tendem a ser peculiares ou que simplesmente fogem dos padrões comuns do ouvinte. No passado, quem sofria com isso eram as variações do metal.

Gritos eram considerados barulhos inaudíveis, e ai dessas bandas se tivessem um público maior do que uma cantora que atinge um número x de oitavas… Essa obsessão por definir o que é e o que não é música faz parte da famosa discussão sobre o que é arte. Um quadro branco ou um rabisco qualquer em uma tela gigante já são o bastante para despertar a ira daqueles que, mesmo que arte não faça diferença em suas vidas (de forma direta) sempre tem algo a dizer sobre o que não devia lhes importar.

A cantora nunca precisou de definições gerais para classificar seu som, algo em constante evolução dificilmente pode ser categorizado, principalmente quando o fator experimental é grande parte do escopo.

Arca não se importa sobre a definição dos outros a respeito do seu som, uma vez que é muito difícil  padronizar algo em constante evolução.

Recentemente, no lançamento do mix de uma hora chamado @@@@@ a cantora obteve muita atenção, mas mais atenção ainda justamente por se qualificar nas conversas envolvendo o pensamento citado. Todo e qualquer motivo para atacar a sonoridade da artista foi usado, justamente por ela ter apenas agradado a críticos com um projeto tão peculiar. Passar tanto tempo tentando entender a razão pelo qual as pessoas implicam com isso é desnecessário, e a própria parece não se importar.

Apesar de que com KiCk i nós temos uma Arca em versão light, o que pode até acabar servindo como uma porta de entrada para os que torcem o nariz para seus trabalhos. Mas o balanço do disco sobre o quanto ele pode ser acessível ainda pode ser um pouco confuso para quem decida embarcar nas batidas da Venezuelana.

A começar pela própria faixa de abertura, em ‘’Nonbinary’’, que em uma primeira ouvida parecem apenas poemas soltos em uma batida forte, mas essa é um dos maiores exemplos do que é o caminho traçado pela artista. Logo no primeiro verso ela deixa explícito sobre seus privilégios e as faltas dele.

Estar em uma posição de destaque entre pessoas trans é perfeito para mostrar que todes também podem chegar onde ela chegou, mas quando ela diz que foi sortuda (e que também não teve sorte) é uma definição da vida de pessoas marginalizadas, que precisam lutar muitas mais vezes para chegar em posições que pessoas cisgêneros alcançam tão facilmente.

As parcerias do álbum não chegam a ser a melhor parte do projeto, mas a sintonia entre os artistas prova que é possível mesclar duas formas de estranheza.

Desde que começou a abraçar sua linguagem mãe podemos perceber que a cantora parece se divertir muito mais nas suas letras, “Mequetrefe” começa como um projeto de reggaeton experimental, passa por um glitch e depois retorna a sua forma original. Absorver essa transmutação musical é algo comum para quem é acostumado com sua música.

E a melhor forma de passar sua ‘estranheza sonora’ acontece em “KLK”, dueto com ROSALÍA, justamente pela sonoridade não ser algo que soa surpreendente para a cantora espanhola. A celebração da amizade e carreira das duas é o foco da letra boba, porém divertida. Toda a ligação entre elas foi assunto para uma live que fizeram falando como se conheceram.

As colaborações são um destaque a parte, e todas são com artistas que funcionam muito bem. Apesar de não essenciais, Shygirl, SOPHIE e Björk completam muito bem o time de convidadas. Surpreendentemente também trazem três faixas que não estão entre as melhores do disco, o que para alguns pode ser uma decepção.

É muito difícil classificar sobre onde as 12 músicas se encaixam, o máximo possível é perceber que temos uma versão mais agressiva e também uma versão mais calma – para os padrões de suas produções. Em ‘’Machote’’ o lado romântico transparece, o que é algo esperado, vide o instagram da cantora e sua relação com seu companheiro. Isso também é visto no vídeo de ”Time”, onde temos os dois fazendo um par bem ‘exótico’. No caso desta música, o apelo estranho do vídeo complementa e muito.

Mesmo não trazendo a mesma força dos álbuns anteriores, KiCk i funciona sozinho de forma a servir como porta de entrada para a artista.

O projeto esperado não trás a mesma qualidade dos álbuns anteriores, mas ele não pode ser visto como algo igual a trinca Xen, Mutant e Arca. O álbum atual é algo novo, como um reset leve na carreira da cantora, ao mesmo tempo que não deixa escondido o estilo que a fez ficar tão falada. A forma como ela conduz o projeto é bem clara sobre como a artista deve ser vista, como um ser objetivo que sempre vai estar em controle do que quer fazer. Ouvir sua discografia é como imaginar um set ao vivo dentro da cabeça, e esse é um dos maiores pontos fortes na música de Arca.

Tudo que ela é consegue ser transportado para a audição sem precisar de visual ou contato físico com a artista, ela é uma das poucas que conseguem perfurar mentes com sua sonoridade tão única e peculiar. Tal peculiaridade também é experimentar, e entre acertar e errar o saldo de KiCk i ainda é positivo, a falta de perfeição parece ser uma arma que a cantora utiliza para expressar sua presença, e a transparência da persona e da música são o melhor convite para novos e antigos admiradores.

Nota do autor:
72/100

Ouça “KiCk i” da Arca:
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