O primeiro som (escutado em “Hammer“) que o ouvinte se depara com o Virgin, quarto projeto de Lorde, é um sonido estranho e bruto. O ruído é possivelmente de uma máquina de tomografia ou um ultrassom — “ultrasound” em inglês, assim como o nome da turnê do disco.
Esse barulho que a artista decidiu incutir logo a primeira vista diz muito sobre a transparência que ela quer alçar (visto que é provavelmente o sonido de um exame de escanamento), sobre ser visto por dentro; o seu projeto mais ambicioso performa uma conversa gutural. O que vem após “Hammer“, esplêndido single que explode em densas linhas de ritmo, é uma exploração corpórea sobre o renascimento de identidade.
Apresentando uma Lorde nova e cheia de vontade de tentar de novo — seja lá o que —, a composição do todo é vista em menos de 35 minutos. É nítido na produção de Jim-E Stack a tentativa de exportar músicas mais experimentais nunca feitas por Lorde. Essa ideia de novo funciona em um conluio perfeito com a narrativa do disco em soar cru: amarrando-se a uma proposta estritamente bem executada.
O que mais se sobressai é que Ella é rigorosamente mágica e, principalmente, segura de seus próprios trabalhos. É quase possível tocar o não-medo em ressurgir com a deliciosa “What Was That” — é possível reparar isso em sua voz, que soa mais efervescente, na nova tentativa de um som mais experimental e acima de tudo, nas confissões que vem de suas entranhas.
O desconforto como gesto de verdade: Lorde escolhe não suavizar
Em tom de perda Lorde fala, pensa, grita e pede ajuda para encarar sentimentos que a transformaram de dentro para fora; a nossa sorte é poder escutar tudo. Termos isso a nossa disposição é só um privilégio. Todo o lirismo que a artista insere dentro desse manifesto é como um documento que ela irá ler em breve. O disco inteiro cria uma noção de “Supercut“ (como ela gosta de dizer) com parafraseamentos que percorrem uma narrativa de perda de si e o reencontro entre espírito e corpo. Mesmo que alguns sons que acompanham essas confissões sejam “altos”, todos são dolorosos.
Há nessas linhas diferentes vidas que a marcaram como um tipo de fogo frio (que mesmo assim queima). Nunca a vimos confessando assim e usando tantas imagens distintas para ceder sentido a essas vidas.
“Shapeshifter“, que em linhas sobre camuflagem emocional e metamorfose identitária tornou-se uma das melhores da tracklist, exemplifica a potência do álbum em contar tudo que já transformou a artista em um ser múltiplo. A música mais bonita do disco conjura um frio na espinha. Nesse sentido, “Current Affairs“, com interpolação de “Morning Love” de Dexta Daps, também amplia essas percepções. E talvez a corpulenta e quase religiosa “David” seja o som para acalmar toda essa agonia.
Encerrar o Virgin se questionando se vai amar de novo após mostrar suas vísceras para o ouvinte deve ser sem dúvida um dos oásis mais fortes e estomacais da carreira de Lorde. É como se, finalmente, fosse possível para ela entender a sobrecarga em renascer.
Não poderia haver retorno melhor para Ella após tantos anos fora. A temperatura aqui é tão diferente para quem a acompanha, que um primeiro sinal pode ser, sim, de estranhamento. Mas para Lorde o mais genuíno está justamente na pureza do desiquilíbrio.