Crítica | Sam Smith, “Love Goes”

Em seu terceiro disco, “Love Goes”, Sam Smith nos convida a dançar sobre os cacos de seu coração quebrado com um pop altamente dançante e genuíno, explora a fundo seu potencial artístico e nos mostra sua capacidade de improviso

A pandemia de 2020 afetou e continua afetando diversos setores da economia e também da cultura. Até a indústria musical entrou no meio. Entre março e abril deste ano víamos diversos artistas adiando seus lançamentos que já tinham datas de estreia previstas. Um deles foi Sam Smith, que não só adiou seu terceiro álbum de estúdio que iria ser lançado no dia 1 de maio de 2020, quanto mudou o nome original de “To Die For” para “Love Goes”, lançando então nesta última sexta-feira (30 de outubro).

Um grande acerto de Sam foi abrir mão de sua concepção artística inicial e respeitar o momento mundial. Afinal, no meio de uma pandemia com altíssimos índices de mortalidade, não seria nada de bom tom alguém com a notoriedade de Smith lançar um disco com o título que se refere a morrer por outro alguém.

A questão está com o “extreme makeover” anunciado em conjunto com o adiamento do projeto. No lugar de apenas mudar o título e editar algumas faixas, é notável que esta série de modificações de “última hora” chegam a parecer remendos até que bem feitos, mas ainda sim remendos. Visivelmente temos duas propostas diferentes conflitando entre si, e que nem mesmo “jogar” o “antigo To Die For” como um compilado de faixas bônus resolveu.

Tudo o que sabíamos sobre o disco, com vários singles já divulgados, é que este seria o trabalho mais diferente de sua carreira, deixando de lado sua essência soul e apostando no pop dançante. É quase difícil não associar essa brusca mudança com seu momento de aceitação queer não-binárie, que impactou até mesmo seus conceitos visuais. É realmente louvável quando vemos qualquer artista colocando tanta honestidade e criando um projeto extremamente autoral.

Sam nos convida a dançar sobre os cacos de seu coração partido, mostrando influências dançantes que lembram antigos hits de Donna Summer, como ‘I Feel Love’ (do qual Smith lançou cover, inclusive). Assim, conseguiu fugir do óbvio e entregou um pop genuíno e longe do genérico. E ainda sim oscila com suas tradicionais baladas tristes e dramáticas de amor, marca registrada que nos mostra que a mudança de sonoridade não é de fato tão radical quanto parecia.

Prova disso é a acapella ‘Young’, que sem dúvidas inicia o álbum genialmente e nos surpreende pela ausência de qualquer instrumento, apenas Sam e uma letra forte sobre sua relação com a fama e o desejo de ter uma “vida normal” sem ser julgado.

Ficar um pouco selvagem, ficar um pouco “chapado”
Beijar uma centena de meninos e não me sentir amarrado a eles
Se você quer me julgar, então vá e carregue a arma
Eu não fiz nada de errado, eu sou jovem

Em harmonia com o que já havia sido mostrado nos lançamentos anteriores, ‘Diamonds’ traz um dos momentos mais dançantes. De acordo com notas de Smith, é considerada um verdadeiro “exorcismo sexy”, e temos logo de cara o exemplo de uma faixa com cara de hit com incríveis sintetizadores e pianos.

Os sintetizadores e instrumentos com certo “ar retrô” que são utilizados ao longo das canções dançantes mostram o quanto, mesmo no universo “pop de balada”, a produção das canções de Smith conseguem se manter sofisticadas e frescas.

Vide as faixas ‘Another One’, ‘My Oasis’ (feat. Burna Boy) e ‘So Serious’, atos tristes e melancólicos, mas que nos levam para uma atmosfera de “dançar para esquecer os problemas”. ‘My Oasis’, inclusive, é uma daquelas surpresas inesperadas e gostosas de receber, com a colaboração de Burna Boy executada de forma maestral, encaixando o universo dos dois artistas perfeitamente.

‘Dance (‘Til You Love Someone Else)’ soa como um clássico disco pop, que esconde em suas notas mais baixas e vocais extremamente atraentes, um sentimento agressivo e desesperado que torna a música mais ainda interessante. Com certeza, um grande destaque do disco, visto que foi produzida para ser um grande hit atemporal das pistas em um futuro ainda incerto.

De um jeito dramático e rompendo com qualquer sequência sonora, ‘For The Love That I Lost’ soa teatral e poderosa, mas absolutamente destoante com toda a obra. Originalmente escrita por Smith e dada para Céline Dion utilizar em seu álbum “Courage” de 2019, Sam também aproveitou da canção em “Love Goes”, porém, de um modo estranho, o resultado final é a sensação de que estamos ouvindo um cover como qualquer outro.

Além dessa, o limbo entre os conceitos de diferentes obras também é perceptível em ‘Breaking Hearts’ e ‘Forgive Myself’. Nos remetem a “clássicos Sam Smith”, mas que deixam a tracklist bagunçada e fragmentada para o ouvinte.

A faixa-título incrivelmente teatral, ‘Love Goes’, com certeza é o verdadeiro destaque do disco. Apesar de sua “grande duração” e uma demora de 1 minuto para começar qualquer verso, temos sons de uma orquestra cirurgicamente bem colocada. Com uma parceria com Labrinth, o jogo de versos são perspicazes, mostrando as duas partes de um relacionamento. A genialidade fica mais evidente com a explosão após a ponte. Sem dúvidas seria uma forma triunfal de encerrar um disco, e teria funcionado melhor ainda neste posto.

Diferente de tudo, ‘Kids Again’ se mostra deslocada do todo, em uma sonoridade totalmente fora do circuito eletrônico e soa como um pop rock mais despojado, talvez indicando as novas direções de um próximo projeto. É uma canção excelente, mas que “encerra” um disco de uma forma aleatória, não causando o almejado impacto de “gostinho de quero mais”.

Entre as faixas bônus, não poderiam ficar de fora os hits mais atuais da carreira de Sam e que iriam para o “To Die For”. É uma sequência com algumas canções que poderíamos definir como “pop perfection”. ‘Dancing With A Stranger’ principalmente, carrega todo o frescor da nova era que Smith estava propondo e um match perfeito com a colaboração de Normani. Todo o brilhantismo ainda continua com ‘How Do You Sleep?’, que sim, é um pop extremamente comercial, mas que utilizou a medida certa na hora de sua construção e entregou como resultado um hit delicioso de se consumir.

A antiga faixa-título ‘To Die For’ nos remete a essência de Sam com um certo grau de evolução. Até um pouco deslocada, ‘I’m Ready’, que conta com Demi Lovato em uma música que surpreende por não ser gritaria do começo ao fim. Apesar de ser um grande hino pop, talvez teria um lugar mais estratégico na concepção inicial do projeto. Entre o que podemos classificar de “bônus do bônus” temos ‘Fire On Fire’ retirada de “Watership Down” e ‘Promises’ com Calvin Harris, cumprindo a funções de apenas serem os bônus do que “hitou” nos últimos tempos.

É admirável ver que o resultado final é um disco que, apesar de confuso em alguns pontos, nos mostra que Sam não rompe de fato com seu passado dos trabalhos anteriores “The Thrill Of It All” (2017) e “In The Lonely Hour” (2014), mas prospecta sim novos cenários e novas sonoridades para utilizar suas impecáveis composições e seu grande potencial vocal.

“Love Goes” é o símbolo de uma evolução musical que foge do óbvio, no meio de uma discografia linear, e que trouxe à tona a capacidade de improviso em transformar uma obra em outra. Como se não bastasse, ainda mostrou que sim, Sam Smith consegue se reinventar e nos surpreender, explorando e elevando todo o seu potencial artístico.

Nota do autor:
79/100

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