Por dentro do “Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso?”, novo álbum do Rubel

Mais brasileiro, Rubel retoma as origens com repertório introspectivo em voz e violão no quarto álbum de estúdio

Por Marcos Preto

Dar nome a uma obra – seja romance, canção, filme, tela, ópera – é uma arte além da arte. Uma das partes mais difíceis do trabalho, afinal: como condensar em uma palavra, ou em poucas, tudo o que representa aquele concentrado de paixões, pensamentos, dores, contradições, euforias, certezas? Por saber dessa dificuldade, fiquei absolutamente fascinado pelo nome deste que é o quarto – e, até aqui, o melhor – álbum do cantor e compositor carioca Rubel

Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso? chega às plataformas de música no dia 28 de maio, às 22h, com vocação para se tornar um trabalho referencial da música popular desta geração. Rubel, eu vi crescer – em relevância artística e numérica – desde sua estreia, em 2013. Se nada em sua produção é por acaso, o que ele quis apontar com o título Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso?? Segundo Rubel, esse nome remete à linguagem literária, uma frase que já coloca o ouvinte dentro de um diálogo, de uma frase em movimento. O contexto pode ser decidido por cada pessoa. Algo com mais potencial para abrir as possibilidades de interpretação do que para explicar qualquer coisa. Essa é a versão do próprio autor – é a que vale, portanto. Mas, ouvindo as nove faixas do álbum, dei a mim o direito de tirar conclusões paralelas.

Considerando que os melhores trabalhos artísticos são reações às biografias de seus autores, vejo que Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso? aponta, de saída, uma certeza e uma dúvida de seu criador. “Beleza, cheguei até aqui e a construção é essa”, Rubel parece afirmar, tão orgulhoso do que fez quanto resignado com o que veio de volta, contra e a favor. “Mas, e daí? Para onde levo o que construí diante de tantas possibilidades sobre o muito que ainda há por fazer?” O conjunto de novas canções – sete completamente autorais, mais uma versão em português para uma música do mexicano El David Aguilar, e uma regravação de clássico do Radiohead – atravessa essas questões tantas vezes paradoxais, organizando em letra e música as seguranças e as incertezas do artista.

No campo pessoal, pode-se dizer que o novo álbum nos traz ecos da cirurgia que Rubel teve que fazer logo depois do álbum anterior, a fim de resolver um prolapso na válvula mitral – ou, em linguagem mais cinematográfica, um sopro no coração, como no filme de Louis Malle. Ninguém volta igual de uma visita tão literal ao próprio coração. E, ainda que essa experiência não seja diretamente tematizada, ela parece pulsar sob muitos compassos deste novo trabalho.

Cirurgias à parte, é notável que Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso? traz Rubel bem para perto de suas origens, abertas em Pearl (2015) e aprimoradas em Casas (2018), seus dois primeiros álbuns. Lá e aqui, o violão e a voz do artista dão o tom para um repertório bastante introspectivo, íntimo, quase confessional. Mas esse contraste só pode ser notado agora porque, entre aqueles dois álbuns e este novo, Rubel lançou o extrovertido As Palavras vol. 1 & 2 (2023), repleto de participações e intervenções externas. É como se agora, em Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso?, o cantor trouxesse seu ouvinte de volta à intimidade do quarto, da cabeça transformada, de seu coração realinhado. Os temas das canções seguem esse mesmo rumo, versando sobre a passagem da vida, o tempo, os amores, as amizades, as perdas e os ganhos.

Muitos desses temas estão resumidos em “Pousada Paraíso”, faixa que abre o álbum ditando os pilares estéticos que serão apresentados em todo esse trabalho. Milagres podem nos atingir se estivermos distraídos o suficiente para que eles nos capturem. Ou, como diria Leminski, distraídos venceremos. Essa música concentra também alguns dos temas centrais do disco: a dicotomia vida versus morte, a espiritualidade, a amizade e o amor. Os arranjos de sopros e cordas escritos pelo jovem pernambucano Henrique Albino são inspirados pelo clássico álbum Amoroso (1977), de João Gilberto.

“A la ventana, Carolina”, de El David Aguilar, ganhou uma letra em português escrita pelo próprio Rubel, passando a se chamar “A Janela, Carolina”. O clima de intimidade, a letra reflexiva e versos como “a sua intuição fez muita falta sua confiança” tocam na essência do que levou Rubel a compor este novo álbum. Ele dobra a aposta na intuição, permitindo que as coisas se desenrolem sem um excesso de interferência e controle.

“Ouro” é certamente a mais sedutora entre as faixas de Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso?. Nela, o violão se afasta temporariamente de João Gilberto para encostar no terreno de Jorge Ben. A letra cinematográfica cria uma narrativa abstrata a partir de algo que pode ser uma carta de amor a uma amiga (não a uma parceira amorosa). A virada do arranjo, quando entra a banda, foi produzida na mesma lógica de um beat de hip hop – que, no final das contas, fica apenas sugerido. A orquestra que protagoniza a segunda parte da gravação foi inspirada em “Mercy Mercy”, de Marvin Gaye.

Uma espécie de prima de “Ouro”, “Azul, Bebê” é outra love song do álbum. Seu arranjo também foi construído como um beat: a bateria sampleada, o baixo synth e o piano loopados. É mais uma carta para um grande amor. Rubel tinha saudade de fazer “canções diretas e pouco arrumadas”, como ele mesmo define. Esta trata da possibilidade de viver uma relação calcada na realidade e não no sonho – e nem por isso menos intensa.

O título de “Pergunta ao Tempo” dá a chave e a senha: a canção foi diretamente inspirada pelo clássico “Resposta ao Tempo” (Cristóvão Bastos/ Aldir Blanc), imortalizado por Nana Caymmi (1941 – 2025). Rubel veste a roupa do personagem que se coloca humilde e ressabiado diante de uma entidade tão poderosa quanto o Tempo, mas que a seguir mostra a verdadeira face: indignado, ressentido, orgulhoso e abusado.

Harmonicamente, “Noite de Réveillon” sintetiza a atmosfera que Rubel buscou, desde o início, para dar lugar para Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso?: um ambiente estético estranho e sofisticado, mas sem perder a dimensão pop. Nesta, o artista escreveu versos como um roteiro de filme, em que diversos personagens compartilham a estranha sensação de euforia e melancolia que pauta a noite da Virada. Em certa medida, o protagonista é o Tempo, de novo e sempre ele.

“Carta de Maria” foi escrita em eu-lírico feminino. É a primeira imersão de Rubel nessa escola buarqueana. A personagem é uma mulher livre, sagaz, que resiste ao conforto como quem resiste à anestesia da alma. Vagamente inspirada em Maria de Padilha, amante de D. Pedro I, para quem construiu um castelo em Sevilha.

Penúltima faixa de Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso?, “Praticar a Teimosia” mergulha na ideia da morte como motor da vida, vagamente inspirado por um conto de Jorge Luis Borges (1899 – 1986). O verso “talvez o sal da própria vida seja sua conclusão” resume com beleza a coragem de se viver sabendo do fim.

A banda inglesa Radiohead encerra o álbum, numa versão de “Reckoner” (Colin Greenwood/ Jonny Greenwood/ Ed O’Brien/ Philip Selway/ Thom Yorke). Essa canção marcou a adolescência de Rubel. Por alguma razão, o canto em falsete torna a interpretação mais brasileira, talvez por ecoar algo que Caetano Veloso e Milton Nascimento tenham nos ensinado a ouvir quando queremos nos sentir em casa.

Produzido em casa pelo próprio Rubel, com o autor tocando violões, baixos, baterias e entregando os pianos a Antonio Guerra, o álbum é finalizado com arranjos orquestrais de Henrique Albino ao longo de todo o disco, e a participação luxuosa de Arthur Verocai na última faixa. Na ficha técnica, ainda brilham João Milliet (mixagem), Felipe Tichauer (masterização), e os engenheiros de som Arthur e William Luna.

Em sua quarta volta ao redor de seu próprio tempo, Rubel nos apresenta em Beleza. Mas agora a gente faz o que com isso? algo com a beleza e a complexidade necessária para seguir girando na nossa cabeça por período indefinido, iluminando e assombrando ouvintes desta geração e de além.

***

A história do álbum vai além das canções e ganha um projeto audiovisual: um filme, de duração média de 6 minutos e direção de Larissa Zaidan – que já assinou projetos musicais de Mano Brown, Rico Dalasam, Xamã e Yago Oproprio. Lançado junto ao álbum, a obra apresenta Rubel como observador e retrata três núcleos de personagens que, ao final, se conectam pelas coincidências da vida.

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