Reagir de forma pacífica a um fim de relacionamento é para poucos, principalmente se este relacionamento for um casamento. É bom não confundir isso com uma reação passiva, pois isso não define em nada star-crossed, o tal falado ‘disco sobre o divórcio’ de Kacey Musgraves. A sorte da cantora é não ter tantas pessoas ligadas em sua vida pessoal de forma que uma separação caísse como uma bomba, e fosse munição para meses de falatório até entre aqueles que não são seus fãs. Por essas e outras, a artista chega em seu quinto projeto com um gostinho de artista novata… sendo que pra quem não a conhece, expressões de surpresa ao saber que é uma queridinha do Grammy e ganhadora de seis prêmios (incluindo Álbum do Ano com ‘Golden Hour’) rendem algumas boas reações.
Como alguém com tanta bagagem musical, aclamação da crítica e prêmios de sobra passa tão despercebida para o grande público? A resposta óbvia poderia ser devido ao seu gênero base: Country. Mas (assim como outras super famosas) é impossível definir Kacey como uma cantora country nos tempos atuais. Se desde seu primeiro projeto ela já pensava muito fora da casinha conservadora do estilo, então não é estranho perceber que agora vai além e pode até servir de referência para subgêneros fantasiosos que a própria usa para se definir tão perfeitamente, como ‘Galactic Country’.
A ansiedade para algo tão pessoal feito por alguém assim chega a picos bem altos. A dúvida que pairava era sobre como Kacey narraria os acontecimentos que culminaram no fim de um casamento, se os relatos seriam identificáveis, se ela atacaria o ex-marido ou apenas se defenderia… E principalmente, qual seria o sentimento dominante? Para os olhos do público, a educação e respeito foram atributos que chamaram a atenção, mas se engana quem achava que este seria um disco displicente em sua narrativa. Aqui a intensidade vibra a cada segundo e é impossível não querer embarcar em um processo de cicatrização e aceitação final de que um amor antes tão grande não existe mais.
O tema de star-crossed poderia servir como uma invalidação de tudo feito no trabalho anterior, já que em seu predecessor quase todas as canções são como cartas de amor para aquele que naquela época parecia ser o homem da vida da cantora. A mesma coisa já passou pela cabeça de Kacey… pensar em apenas ignorar tudo que foi escrito e apresentado no passado poderia ser uma ótima opção para um recomeço, mas é impossível esquecer algo tão emblemático em sua carreira. É óbvio também perceber que este nunca existiria se não fosse por ‘Golden Hour’, não pela sua temática ser automaticamente um dos destinos prováveis de uma relação, mas sim pela maturidade imposta nesta obra. Essa sensatez só foi possível através da dor e do choque de realidade que o fim de um relacionamento poderia causar em alguém. Em primeiro momento nada parecia ter qualquer significado, e em algum momento tudo foi sentido.
A abordagem quase que teatral foi a melhor pedida para uma introdução que sintetiza exatamente o que vamos ouvir a seguir, e a faixa homônima já demonstra toda a força que a história contada vai trazer. Justamente por ser tão intrínseca a obra inteira é muito difícil assimilar ‘star-crossed’ como uma canção avulsa, sozinha ela não causa metade do que faz ouvida durante o percurso de quase cinquenta minutos que vem após. É também em um dos seus versos que Kacey já responde uma dúvida mortal sobre como tudo acabou: “What have we done?, Did we fly too high just to get burned by the sun? No one’s to blame, ‘Cause we called all the angels to save us, Called them by name, But I guess they got lost”. A relação acabou, ninguém sabe a causa e ninguém tem culpa. Para aqueles que estavam preparados para os motivos que levariam a ataques ríspidos e teorias sobre quem fez o que, fica o aviso de que nem quem canta sabe ao certo a resposta desses questionamentos.
Alterações de humor são frequentes durante a tracklist, como em ‘good wife’, onde surge a vontade da cantora se perguntar a razão de querer se submeter a comportamentos tão vistos como vazios, mas que para ela pareciam fazer uma diferença que ajudaria a salvar o que estava destinado ao fracasso. Outro bom exemplo está em ‘simple times’, que mesmo começando com um verso que parece saído de uma música de Paris Hilton dá um ótimo resumo sobre o que deveria ter sido esperado deste disco; simplicidade. Ambas fazem parte de uma sonoridade bem pop que surge em momentos específicos e nunca em exagero, mas sempre dando o bastante para mostrar que qualquer um que aguardava um grande estouro em produções e composições teve uma impressão errada. Kacey Musgraves nunca se dá ao trabalho de usar palavras ou definições complicadas para falar sobre momentos comuns, justamente porque não há necessidade alguma para exibir de forma complexa algo tão banal quanto uma paixão.
Apesar de aceitar bem o que aconteceu, não existe qualquer remorso em se perguntar porque tudo chegou ao fim. ‘justified’ deixa claro que ela também tem culpa ao pensar se deveria ter tratado o ex-marido corretamente, e mostrar que era uma mulher cheia de dúvidas. O melhor acompanhamento para a anterior está algumas faixas depois: em ‘camera roll’, temos uma das escritas mais honestas, onde a narração do óbvio machuca um pouco justamente por ser algo tão comum e fácil de se imaginar… “Chronological order ain’t nothing but torture, Scroll too far back, that’s what you get, I don’t wanna see ‘em, but I can’t delete ‘em, It just doesn’t feel right yet, not yet”. Um simples verso que pode muito bem fazer parte de toda a jornada de aceitação fica bonito justamente por trazer identificação.
A vulnerabilidade corre solta também, mas é contada de forma tão direta que pode até passar despercebida… saiu de um relacionamento e acabou caindo na vontade de sexo casual para preencher qualquer tipo de vazio? Em ‘hookup scene’ temos a visão de Kacey sobre isso. Para quem tem saudade de um som mais cru presente em seus dois primeiros álbuns essa é a parte perfeita para sentir isso.
O ponto mais controverso está no fim, onde ‘there is a light’ soa exatamente como as sessões regadas a alucinógenos que a cantora costuma ter quando está em processo de criação. O solo de flauta dá um charme único e parece até ser um convite para ser ouvida em um estado que só é alcançado através do uso de entorpecentes. ‘gracias a la vida’ é definitivamente o momento ‘ame ou odeie’, até durante toda a faixa é possível se perguntar diversas vezes o que isso está fazendo aqui… mas quando se percebe que claramente temos uma Kacey pós viagem de cogumelos entendemos o quanto isso a representa. Resistir ao seu começo lento é recompensado pelo show de sintetizadores e vocoder pesados que vem depois em um momento arrebatador.
Se Kacey Musgraves tinha alguma dúvida sobre como narrar uma tragédia amorosa, ela acerta em cheio transformando situações ruins em momentos de glória na sua carreira. Optar por uma escrita que vai direto ao ponto da forma mais transparente possível é o bastante para contradizer quem achar que só porque há uma inspiração em Romeu e Julieta significa que tudo deveria ser maximizado musicalmente. Deixar o apelo visual ser o bastante para traçar essa influência foi o correto, e as canções se provam mesmo sendo compostas por arranjos simples, acompanhadas de um ou outro momento mais agressivo. A sensação de satisfação é imensa, e a artista segura muito bem o trabalho árduo que é lançar algo após outro trabalho de imensa qualidade.
A personalidade de Kacey se mostra completa de uma vez, porque se já tínhamos conhecido seu lado romântico, agora também conhecemos seu comportamento lidando com frustrações e medos em relações pessoais. Falar sobre o fim do amor com um pouco de raiva, carinho e às vezes se colocando como culpada é se mostrar imperfeita, o que condiz exatamente com aquela cantora que sempre se mostrou com os pés no chão a respeito de quem é e o espaço que ocupa. De uma forma bem ordeira e descomplexa, a maior lição que star-crossed deixa é provar que não há necessidade de um foco tão melodramático e exagerado quando o objetivo é falar de algo tão normal e corriqueiro, o ato de simplesmente deixar de amar alguém.