Desde 2014, a artista americana Kesha não teve sossego diante da mídia por conta da batalha legal travada com seu antigo produtor, Dr. Luke, e sua ex-gravadora – que envolveram muitos processos e acusações de abuso sexual. Ela, então, deu luz ao “Rainbow”, onde suas canções sobre superação e força ganharam o mundo trazendo um novo gás para que ela se reerguesse.
Em seu mais recente álbum, “High Road”, lançado nessa sexta, vemos a nova empreitada da multifacetada artista, não só pelo pop que a consagrou em 2009, mas como por outras vertentes, presentes no álbum anterior ou nunca experimentadas até então, caracterizando uma verdadeira jornada de autodescobrimento. Talvez esse seja o maior trunfo do disco, assim como seu calcanhar de Aquiles: recheado de grandes momentos, em determinado ponto, falta coerência a um álbum que apresenta tantas facetas.
Veja nossa crítica, faixa a faixa, do “High Road”:
1. “Tonight”
O álbum já abre com uma grata surpresa. Através de vocais melódicos e tranquilos dizendo que “Esta noite é a melhor de nossas vidas”, a faixa cresce, dá lugar a um bass pesado e sintetizadores, se tornando um verdadeiro ode à Ke$ha (ainda com o “$”) que conhecemos em “TiK ToK”, entregando versos ágeis quase que como quem está contando uma narrativa em busca da noite perfeita. Por mais que a música fale sobre fazer novas memórias, o saudosismo é válido aqui, uma vez que, foi com essa pegada, que a cantora conquistou milhões de fãs na década passada.
2. My Own Dance
O que começa prometendo ser o “hino do dia seguinte” é, na verdade, uma grande analogia à tudo que a cantora ouviu durante os últimos anos “A internet ligou e quer você de volta, mas você poderia fazer rap e não ser tão triste?”. Co-escrita por Dan Reynolds (do Imagine Dragons) a faixa pega emprestado um pouco da megalomania do cantor em seu refrão e soa quase como algo cartunesco, mas sem perder muito da qualidade. Descobrimos aqui o quão importante para Kesha é cantar (e dançar) em seu próprio ritmo, ainda mais depois de tanto tempo sendo controlada.
Confira o clipe de “My Own Dance”:
03. “Raising Hell” (Feat. Big Freedia)
O primeiro single do álbum é uma canção essencialmente pop, como muitos pediam há anos. Com batidas orgânicas, envolvendo trompetes e afins e, novamente, apelando para a “pegadinha”do piano no início da faixa, vemos o nascimento do que já soa como um dos clássicos da cantora. O clipe, narrando a história de uma evangelista televisiva em fuga, é um espetáculo à parte, assim como os ad-libs de Big Freedia, tudo aqui se encaixa e cria um dos ápices do disco.
Veja o clipe de “Raising Hell”:
04. “High Road”
A faixa-título carrega sobre si a responsabilidade de dar liga e coerência a todo o corpo de trabalho da obra e o faz satisfatoriamente bem. A grande ideia aqui é mostrar que as pessoas são capazes de serem mais de uma coisa ao mesmo tempo, apresentando o mais melódico dos refrões até agora, quase que como um mantra, enquanto as estrofes são recitadas com a cadência de líderes de torcida. O tema não difere muito do que já vimos nas músicas anteriores: auto-descoberta e viver a vida ao máximo possível. Destaque para o break que chega, muda tudo o que você acredita saber sobre a canção e termina, de forma repentinamente violenta. Incrível!
05. “Shadow”
As coisas começam a desacelerar nessa aqui, uma mega balada, feita para ser entoada ao vivo, sobre tirar as influências negativas de sua vida (as conhecidas “sombras”). A introspecção, os agudos e sinceridade da faixa vão agradar aos que foram conquistados com seu álbum “Rainbow”, de 2016. É bom ver Kesha abrindo seu coração novamente, sem perder o humor (“Se você não gosta de mim você pode chupar o meu ***”), o público agradece.
06. “Honey”
Diretamente das faixas que não entraram no disco anterior, vemos aqui uma balada acústica gostosinha de ouvir com a cadência típica da cantora: praticamente cuspindo os versos, o que é uma delícia. O refrão é poderoso e conta com várias vozes crescendo juntas, já a letra funciona como uma canção de vingança “Acho que nunca mais te vejo, então adeus”. Outro ponto alto, uma pena que destoe tanto do restante do disco.
07. “Cowboy Blues”
O ukelele na abertura já comprova a desaceleração quase que total do álbum. O mais legal da faixa é a sensação de que ela está sendo escrita enquanto a ouvimos. Cantando sobre como a solidão acaba por bagunçar os instintos até da mais segura das pessoas – “Eles dizem que você vai saber na hora certa, mas e se você não souber?/ Será que eu perdi meu amor verdadeiro?”-, a voz de Kesha está cristalina e Wrabel (seu acompanhante vocal masculino e co-compositor da maioria das faixas do “High Road”) é quase que intimado a juntar-se à ela na música (“Cante comigo, seu cabeça de merda”). Outro ponto interessante da canção é a habilidade que ambos apresentam para rir de suas inseguranças em relação ao futuro, enquanto fantasiam com o presente.
08. “Resentment” (feat. Brian Wilson, Sturgill Simpson e Wrabel)
Reunindo um trio nada usual: o ex-Beach Boys Brian Wilson, a voz country de Sturgill Simpson e, novamente, Wrabel, temos aqui uma música bem agradável – uma balada acústica que flerta com o country mas sem alcançá-lo de fato, falando sobre uma relação tóxica. Boa, mas funcionaria melhor em uma outra posição dentro do álbum. Aqui, após a sequência de 4 baladas, soou um pouco repetitiva.
Emocione-se com o clipe de “Resentment”:
09. “A Little Bit Of Love”
Dedicada para um ex, as coisas aceleram novamente, enquanto Kesha canta “Você vai sentir minha falta quando eu estiver na vida após a morte”. Com estrofes fracas e um refrão surpreendentemente pegajoso e com vibes épicas, a canção cumpre seu papel de colocar as coisas de volta ao eixo depois do bloco acústico do disco, mas falha em ser memorável.
10. “Birthday Suit”
A faixa, vazada em trechos em 2017 e depois completa em 2019, já era conhecida dos fãs da cantora. Flertando escancaradamente com a PC Music de Charli XCX e com os sons dos jogos 8-bit do Mario, chegamos ao que talvez seja o momento mais pop do álbum. Com um refrão todo cadenciado como a trilha sonora do nosso antigo super nintendo, a construção é extremamente criativa enquanto fala sobre ficar pelado, – “Você tem alguma tatuagem secreta?“-literalmente.
11. “Kinky” (feat. Ke$ha)
Sua parceria consigo mesma (ou pelo menos com seu “eu”do início da carreira) está mais para uma homenagem ao pop dos aos 90 do que aos sintetizadores e autotune dos anos 2010. Aproveitando a faixa para desconstruir alguns conceitos de gênero, falar sobre poliamor e liberdade afetiva, a cantora entrega outra faixa pop de qualidade. Vale notar que a música começa com uma pegadinha da cantora na mãe dela, alegando estar em um estúdio próximo ao das Spice Girls e, em seguida, apresentando a nova “Kinky Spice“.
12. “Potato Soup (Cuz I Want To)”
A vibe circense dessa canção é como uma grande metáfora para todo o sentimento de cansaço que gira em torno da vida adulta e o desejo de retornar à falta de preocupações da infância (“Vou ficar andando de pônei até dar a hora dos doces“). Funciona mais na teoria do que na pratica, com uma grande distância do restante do disco, a faixa se perde na própria ideia.
13. “BFF” (feat. Wrabel)
Soando incrivelmente parecido com Adam Levine, Wrabel abre a faixa mais good-vibes do álbum. Cantando sobre os bons momentos ao lado dos amigos, as vozes soam incrivelmente bem juntas e íntimas. O mais legal da canção são os detalhes da amizade entre os cantores, como da vez em que Wrabel enviou para Kesha doces em forma de pênis porque ela estava surtando antes do Grammy. É para isso que servem os amigos, não é mesmo?
14. “Father Daughter Dance”
Aqui vemos a cantora desabafar (quase que visceralmente) sobre a ausência de uma relação paternal e sua vida – “A pior parte disso é que eu nem estou triste, como eu vou sentir falta de algo que nunca tive?”- declama antes de entoar um dos maiores agudos da obra. Propositalmente curta e permeada de sons de tiros e armas, a faixa é como um soco no estômago. Incrivelmente íntima e literal.
15. “Chasing Thunder”
Com o clima perfeito de encerramento, cantando sobre os altos e baixos da vida e sobre nunca desanimar, temos aqui, novamente, o toque de Dan Reynolds e seus característicos refrões cheios de vozes e bem marcados. A faixa é linda e fecha o disco com uma visão otimista pós jornada de autodescobrimento. Afinal, é essa imagem que temos do atual trabalho de Kesha: uma grande caminhada atrás de quem ela realmente é.